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A raiva do crente

É sempre fácil reconhecer quando alguém acabou de chegar de um retiro da igreja. Todos ficam tão mansos, calmos, meio “fora do ar”. É lindo. Você chega perto e pergunta: “E aí, meu irmão, tudo bem?”. A resposta, seja qual for, virá em tons mais baixos, acompanhada de um sorriso suave e um olhar dócil. Eu gosto de chamar esses momentos de “fase Francisco de Assis” (aquele que canta para irmão Sol e irmã Lua e vela por todos os animais da floresta). Andam por aí sem nem colocar as mãos no bolso, como se ainda estivessem secando o esmalte recém-aplicado às unhas. Sabe como é? As mãos caídas do lado do corpo com os braço meio que preparados para levantar voo? Quando falam, seus olhos brilham com compaixão e ternura. Os olhos ficam meio envidraçados, como um coelhinho de um filme da Disney.

Agora, por favor, me entenda! Não estou fazendo pouco do benefício extraordinário que um retiro nos traz. É bom sair da praça, ir para as montanhas, a floresta ou mesmo para o deserto. É ótimo separar tempo para uma oração mais prolongada, para reflexão e louvor junto com outros retirantes. Todos voltam com um espírito de comunhão e camaradagem. Afinal, fomos companheiros de viagem. Camaradas que escalaram as alturas com Deus. Compartilhamos algo que é difícil de alcançar nos breves momentos que nem de longe conseguimos separar em nossa rotina, em meio a trânsito, afazeres, questões familiares, deveres de casa, tarefas mis, para não falar nas frustrações e nos desafios, nas tentações e nas provocações.

Com pouco tempo, no entanto, o barulho que nos parece tão alienígena volta a invadir o nosso íntimo. O calor da disputa no trânsito contagia. Oração não é mais um exercício feito debaixo de uma árvore e ouvindo o borbulhar do riacho que passa pelo acampamento (ô, acampamento abençoado!). À noite não ouvimos mais os grilos e o vento, nem podemos mais ver as estrelas ao pisar na grama macia e convidativa. Ouvimos o “plim plim” de milhares de televisores vizinhos, o furor dos ônibus que passam pela nossa janela acompanhado por um tremor que toma o prédio todo. Ah, como nos sentimos quietos naquele retiro! O chão parecia tão macio, sereno e sólido. Nada tremia. O corpo sentia paz.

Mas o barulho, os tremores, o dia a dia e as notícias vão nos invadindo. E então começa: o elevador nunca vem. As filas da direita e da esquerda no caixa do supermercado andam mais do que a nossa. Um caminhão quebra, há uma blitz, e o trânsito para. Começamos a ter pressa de novo. Cada obstáculo é mais uma gota no sistema que está começando a esquentar.

Então vem a explosão. Descemos da cruz, como costumo dizer. Falamos imprecações (teoricamente, claro). Ficamos com raiva daquele taxista que nem conhecemos. Damos um murro no volante, na parede, na mesa. Estamos com raiva. E, para abater a nossa raiva, contamos até dez. Mas fica o seu fel, um resíduo que vai alimentar a próxima explosão.

Essa raiva é venenosa, não há dúvida. Domínio próprio é fundamental, e sempre, pois se deixarmos chegar a isso, podemos realmente dar um passo em falso. Podemos pecar feio. O cristão não pode voltar do retiro e simplesmente gastar a sua paz. Ele tem que cultivar a paz, mesmo quando não está longe do barulho.

Mas isso não quer dizer que nunca vamos conseguir ficar sem raiva. Citando o Salmo 4, Paulo fala da raiva: Quanto à antiga maneira de viver, vocês foram ensinados a despir-se do velho homem, que se corrompe por desejos enganosos, a serem renovados no modo de pensar e a revestir-se do novo homem, criado para ser semelhante a Deus em justiça e em santidade provenientes da verdade. Portanto, cada um de vocês deve abandonar a mentira e falar a verdade ao seu próximo, pois todos somos membros de um mesmo corpo. “Quando vocês ficarem irados, não pequem”. Apaziguem a sua ira antes que o sol se ponha, e não deem lugar ao diabo. (Ef 4.22-27).

A nossa defesa é nos acostumar a nos despir do velho homem e nos revestir de Cristo. Se não fizermos isso acabamos dando lugar ao Diabo. Temos que cuidar dessa raiva. Mas com que urgência? Paulo mesmo diz que tem que ser antes do sol se pôr. Mas como? A resposta está no Salmo que Paulo citou:

Responde-me quando clamo, ó Deus que me faz justiça! Dá-me alívio da minha angústia; Tem misericórdia de mim e ouve a minha oração. Até quando vocês, ó poderosos, ultrajarão a minha honra? Até quando estarão amando ilusões e buscando mentiras? 

Pausa

Saibam que o Senhor escolheu o piedoso; o Senhor ouvirá quando eu o invocar. Quando vocês ficarem irados, não pequem; ao deitar-se reflitam nisso, e aquietem-se. 

Pausa 

Ofereçam sacrifícios como Deus exige e confiem no Senhor. Muitos perguntam: “Quem nos fará desfrutar o bem?” Faze, ó Senhor, resplandecer sobre nós a luz do teu rosto! Encheste o meu coração de alegria, alegria maior do que a daqueles que têm fartura de trigo e de vinho. Em paz me deito e logo adormeço, pois só tu, Senhor, me fazes viver em segurança. (Sl 4.1-8).

Para vivermos sem o pecado que a raiva provoca, temos que clamar. Temos que levar tudo a Deus: aborrecimentos, ultrajes, mentiras, injustiças. E mais, temos que fazer isso até o fim de cada dia, como Paulo destacou. “Ao deitar-me…” é o momento. Então refletimos. Não tentamos empurrar a raiva para o fundo da gaveta. Não tentamos enterrar o que aconteceu repetindo “tudo bem, tudo bem, estou bem, nada a ver…”. Não tentamos esquecer o que houve. Não! Temos que refletir. Peça que Deus encha o seu coração. Não basta uma corridinha suada, um calmante, e certamente não uma novela, por favor! Raiva enterrada tende a voltar. E se enterrar algo meio morto, o que sai da terra é horripilante! É como o acúmulo de água numa torre. Se não esvaziar a torre, na hora de abrir a torneira, toda a pressão das frustações acumuladas vai fazer jorrar as lembranças “esquecidas”, todos os “tudo bens” – e te levar ao pecado.

É fácil viver assim? Não. Precisamos de um milagre. Mas é isso que Deus está operando em nós, a cada dia. Somos milagres em progresso. Somo dependentes de uma ação sobrenatural para lidarmos com as coisas “normais”. É na praça, em casa, com vizinhos e, principalmente, no nosso íntimo que esse milagre tem que acontecer sempre.

Se realmente vivermos assim e dependermos desse milagre diário, então dormiremos em paz e em segurança. Que segurança? Segurança de que não contribuiremos para o nosso próprio mal. Sim, porque o “salário do pecado é a morte”.

Na paz,

+W

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    ICNV
    Santa Margarida