No quinto capítulo do livro de Atos dos Apóstolos há uma história tão chocante que parece inacreditável que tenha sido incluída na Bíblia. A Igreja crescia e prosperava espiritualmente, apesar da perseguição. Entre os fiéis havia necessitados e os cristãos se mobilizavam para ajudar uns aos outros. Eram dias maravilhosos e terríveis. Deus se movia poderosamente entre aqueles homens e mulheres. Milagres eram a ordem do dia. Os corações do povo pulsavam por amor a Deus e ao próximo. Alguns chegaram a vender os seus bens para poder auxiliar os irmãos. Essa dinâmica de ajuda aos mais materialmente carentes costumava ser intermediada pelos apóstolos, visto que naturalmente os líderes da Igreja tinham mais conhecimento das reais necessidades dos demais. O texto sugere que as doações eram feitas publicamente e não em segredo. Aparentemente, a abertura entre os irmãos era total. É assim quando uma comunidade realmente vive em comunhão: não há pretensão, não há segredos. Há uma transparência que só é possível quando existe um mover do Espírito em cada coração.
Ananias e Safira venderam um campo e trouxeram o dinheiro da venda para os apóstolos. Fizeram isso num contexto público: Pedro recebeu a doação e havia testemunhas. Só que eles não trouxeram tudo, guardaram parte do dinheiro. Ao ser questionado sobre se o valor representava a venda toda, Ananias afirmou que sim, que tinha entregue tudo o que recebera. Mas Pedro denunciou a mentira, que não era apenas contra os irmãos, mas contra o Espírito Santo. O homem caiu morto. Três horas depois, Safira chegou e confirmou a mentira, o que também a fez morrer na presença do Senhor.
Pedro ponderou com Ananias que ele não tinha obrigação de vender o terreno. Continuou dizendo que não teria obrigação de trazer o valor inteiro da venda para a igreja. O que ele fez de errado foi afirmar que havia trazido tudo sem que fosse verdade. O que isso tem de mais?
O apóstolo Paulo diria, anos depois, que somos membros uns dos outros. Que a Igreja não é apenas uma assembleia de pessoas com algo em comum. Somos o Corpo de Cristo. Estamos ligados. E essa ligação é de uma seriedade que poucos compreendem. No caso de Paulo, ele denunciou atitudes contra a comunhão dos santos. Em 1 Coríntios 11, disse que, ao chegarem à mesa da Ceia, muitos tinham trazido sobre si juízo por desprezar a comunhão verdadeira, a doação de si. Havia pessoas passando fome, enquanto outras se fartavam à mesa nas ocasiões de “comunhão”. Por isso, muitos estavam fracos e doentes. Alguns estavam até “dormindo” (uma expressão grave, que fala de morte – espiritual ou literal). Sua comunhão era um engodo. Sua irmandade não era real. Reuniam-se, mas sem o proveito espiritual que poderiam receber. Pelo contrário, por causa da aparência de comunhão, sem a devida doação de si, na hora da mesa do Senhor eles se tornavam “réus do corpo e do sangue”.
Há indivíduos que parecem se doar na igreja. São pessoas que exalam simpatia, “compaixão” e até um sacrifício de si. Tornam-se queridas, celebradas, até mesmo o centro das atenções. Mas algumas delas não doam de si, embora façam o que é necessário para serem conhecidas como amorosas. Expressam com palavras um amor aparente para com o próximo, mas nunca realmente se abrem e se doam de fato. Sua vida é uma paródia de comunhão cristã. Recebem muito, mas muito mais do que doam. E recebem porque querem ser celebradas. Alimentam-se da sua reputação piedosa e amorosa. Mas, no fundo, nunca se doam. Mantém uma fachada que esconde escudos impenetráveis. Sua abertura é um teatro de comunhão. Parece que se dão completamente, mas a sua doação não é completa. Olhos não conseguem ver essa realidade, os outros não são capazes de enxergar a profunda hipocrisia que se esconde por trás do semblante aparentemente lindo e piedoso.
No entanto, há um pecado grave sendo perpetrado, pois essas pessoas estão mentindo para o Espírito Santo. Não há vida nelas, há somente a aparência de vida. Pois o Espírito nos uniu em Cristo, o que requer que sejamos transparentes, que façamos o que o mundo considera loucura. Praticamos coisas perigosíssimas, como confiar uns nos outros, confessar os nossos pecados uns aos outros, nos doar uns aos outros. E é claro que, com essa doação, vem reconhecimento. Vem um bem querer. Há uma reciprocidade de amor e afeto. A família de Deus é assim.
É agradável ter por perto alguém que sempre nos cumprimenta, diz que nos ama e fala do amor de Deus. Mas palavras nem sempre mostram o que está acontecendo dentro do seu coração. Só o Espirito sabe o que se passa por trás dos nossos olhos. E foi a isso que Pedro se referiu. Ananias e Safira tinham mentido para a assembleia. Mas a assembleia não é apenas uma agremiação associativa: é um corpo formado pelo poder do Espírito Santo. Eles tinham “doado” de si para Deus. Mas sua doação era uma mentira, pois entregaram uma parte enquanto reservavam outra para si. Fizeram o necessário para estarem inseridos e serem bem quistos – mas com um pé atrás.
Quem doa de si se contenta em fazer o bem e servir a Deus. Quem doa apenas para fazer parte busca aprovação e ser celebrado pelos seus atos de “justiça”. Quer ouvir o quanto é querido. Precisa saber o quanto é amado e precioso. Quem doa de si não precisa fazê-lo perante os homens. Seu galardão não é uma bela reputação, não é ser celebrado. Esse cristão pode muito bem esperar o último dia para receber o galardão. Então, com gozo ouvirá: “Bem feito servo bom e fiel. Entre no descanso do seu Senhor”.
É possível doar de si e ser abençoado? Claro. Mas é igualmente possível doar parte de si sem que os outros vejam sua hipocrisia e, assim, se tornar réu do corpo e do sangue. Que o Senhor tenha misericórdia de nós e que examinemos o nosso coração, cada um de nós, para não cairmos nesse pecado religioso tão nefasto mas tão sutil.
Na paz,
+W