A Bíblia relata a história de um cego de nascença que vivia diariamente da esmola alheia. Certo dia alguém chegou, aplicou uma mistura de terra e saliva sobre seus olhos e mandou que se lavasse. Ao limpá-los, aquele deficiente físico passou a ver pela primeira vez na vida. Os fariseus o interpelaram sobre como fora curado – e no sábado. Ele se limitou a contar sua história: “Eu era cego e agora vejo!”. O próprio processo da cura foi sumariamente relatado por João (no capítulo 9 de seu evangelho): lavou os olhos e voltou vendo. O fato em si não tem tanto peso para o evangelista quanto a explicação e o confronto posterior com os religiosos.
De maneira magistral, João tece uma discussão que contrasta a cegueira física com a cegueira espiritual. O cego viu, por obra de Jesus. Os fariseus levantaram um debate devido ao dia em que ocorreu a cura, sábado. Por ter feito o milagre no “dia errado”, nunca aquilo poderia ter partido de uma iniciativa divina. Deus não faria essas coisas. Certamente, nunca redefiniria o que o sábado significa.
Há muitos elementos fascinantes nesse relato.
Um deles é a crescente certeza e habilidade teológica do ex-deficiente. Ele começa por simplesmente afirmar o que aconteceu. Mas, face à oposição e à sabatina dos fariseus, cresce na sua afirmação sobre quem teria sido o responsável. Primeiro afirmou que não sabia quem era. Depois disse que certamente era um profeta. Teve até de recorrer à ironia, uma vez que os fariseus passaram a acusar Jesus (a quem ele ainda não conhecia) de ser pecador. Depois o próprio homem que havia sido curado foi atacado. Mas o ex-cego mostrou que conhecia a Lei e sabia algo sobre Deus. Todavia, ainda não conhecia Jesus. Quando o Cristo se apresentou, aquele homem fez o que todo bom judeu faria na presença de Deus: o adorou.
É claro que conhecemos Jesus. Temos muitas informações a seu respeito. Todavia, há detalhes no texto que nos constrangem. O principal volta à primeira afirmação de Jesus: “Este homem está cego, não porque os seus pais pecaram, mas para a glória de Deus”. Imagine. O Senhor permite que alguém passe a sua vida nas trevas e, somente após uma vida de mendicância e humilhação, é curado – e tudo aquilo por uma razão: a glória de Deus. “Não”, poderíamos argumentar, “Jesus não é assim, Deus não é assim, imagine. Isso seria um pecado!”. Como seres iluminados que somos, de sensibilidades democráticas e pós-modernas, sabemos que o homem nasceu cego porque nasceu cego. Pronto. Nada mais do que isso. Mas… não foi o que Jesus falou. Passamos por cima dessa afirmação profundamente desconfortável e vamos direto para a cegueira dos fariseus.
Sabemos quem é Jesus, afinal. Mas será que enxergamos Jesus?
Nossa doutrina nos leva a bons argumentos. Sabemos discursar, discutir, debater. Muitos estão despertando para teologia – e é bom que seja assim. Melhor do que nos entregarmos a uma vida espiritual apenas desmiolada e passional. A teologia arde em nosso peito, somos tomados de zelo pelas verdades das Escrituras. Mas não somos os primeiros.
Após a ressurreição de Jesus, alguns discípulos estavam a caminho de Emaús. Alguém se juntou a eles e perguntou sobre o que estavam discutindo. Eles literalmente perguntaram “você é o único visitante em Jerusalém que não sabe das coisas que ali aconteceram nestes dias?” Seguiu-se então um diálogo, em que Jesus lhes apresentou a verdade sobre si mesmo, discursando a respeito das Escrituras. O coração deles foi movido, ardendo com as verdades sobre o Messias. Mas somente no momento de partir o pão viram Jesus por quem ele era.
Maria, ao lado do túmulo vazio, chorou pela perda do seu Mestre. Aquele que muito a tinha perdoado. Aquele que tinha lhe oferecido uma vida completamente nova. Viu alguém e perguntou ao homem se havia levado o corpo do seu Senhor embora. Foi então que Jesus falou: “Maria”. Ela voltou-se para Ele e disse: “’Rabôni!’ (que significa Mestre)”.
Jesus pode abrir os nossos olhos e ainda assim ficarmos cegos para quem Ele realmente é. Podemos enxergar a verdade mas ficar aquém da revelação gloriosa que nos leva a cair de joelhos e adorá-lo. Tratamos a Bíblia com critério e com um crivo que tenta explicar que Jesus não é bem assim como ela diz. Tentamos justificar que Deus não pode fazer o que as Escrituras dizem que fez e pelas razões claramente expostas nelas. Imagine, um homem cego para a glória de Deus! Absurdo! Desumano!
Sou um defensor da sã doutrina. Se não estudarmos bem as Escrituras não seremos “servos aprovados.” Mas doutrina não é suficiente para mim. Quem se prende apenas a ela perde o melhor de tudo. Quem apenas vasculha as Escrituras se esquece do que elas nos apontam.
Paulo disse: “Quero conhecer Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação em seus sofrimentos, tornando-me como ele em sua morte para, de alguma forma, alcançar a ressurreição dentre os mortos. Não que eu já tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfeiçoado, mas prossigo para alcança-lo, pois para isso também fui alcançado por Cristo Jesus. Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado, mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que ficaram para trás e avançando para as que estão adiante, prossigo para o alvo, a fim de ganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus.” (Fl 3.10-14).
Tenho me debruçado sobre as Sagradas Letras. Tenho lido inúmeros livros de eruditos, verdadeiros santos da história da Igreja. Tenho procurado coerência nas minhas ideias sobre Deus e as coisas concernentes a Ele. Mas foram muitas as vezes em que caí no chão, tomado por reverência, gozo e temor e, de coração partido, exclamei “meu Deus e meu Senhor!”. Para que isso aconteça, as escamas têm que cair dos meus olhos. Preciso de um encontro pessoal com o Mestre. Preciso ouvir a sua voz chamar o meu nome. Preciso ouvi-lo dizer “sou Eu”. Só de ouvir isso… tudo muda. A angústia por precisão doutrinária e ortodoxia é substituída por devoção, por doxologia.
Jesus mesmo disse: “Esta é a vida eterna: que te conheçam o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.” (João 17.3). Precisamos ver Jesus. Sinto um fogo em meu peito. As Escrituras me comovem. Mas quero mais. Preciso de mais. Preciso que minha cegueira crônica seja curada. Pois, mesmo na luz, costumo não ver o Mestre como Ele realmente é. As Escrituras me chocam, vez por outra. Rejeito o que parecem dizer a seu respeito. Se tão somente me permitisse olhar para Ele e ver… com certeza haveria menos debate e mais adoração. E certamente haveria mais silêncio e lágrimas.
Na paz,
+W