Vivemos numa época altamente movida por experiências pessoais. E isso acaba sendo canalizado para nossa fé: cremos que o auge da vida espiritual se encontra naquilo que o indivíduo experimenta, algo comovente e arrebatador. Toda teologia, toda doutrina, todo saber acha sua expressão mais sublime na experiência com o divino, no “encontro com Deus”. Pelo menos é assim que reza a cartilha popular da espiritualidade de enorme parcela da Igreja de nossos dias. Segundo esse modo de pensar, quanto mais forte for a experiência, mais próximos ficaremos de Deus. Só que há um porém: existe uma diferença crucial entre a experiência com Deus e o conhecimento de Deus.
Esse conceito é achado claramente nos escritos do teólogo John Stott e, ainda antes, nas Institutas de João Calvino. Certamente, se esse encontro com o Senhor ocorre, a nossa reação deve ser de profunda emoção e enlevo emocional. Uma comoção que pode até ser somatizada por meio de arrepios, choro compulsivo, um gozo inexprimível e/ou uma perda da noção do tempo. De fato, essa “experiência com Deus” se caracteriza, no imaginário coletivo, por um estado alterado de consciência. “Saímos de nós mesmos”, seria uma das maneiras que pessoas descreveriam esse momento especial e único com o Senhor.
Ouvi alguém descrever a sua visita ao jardim que os guias turísticos afirmam ser o do Getsêmani, em Jerusalém. Digo que afirmam porque, após séculos de domínio islâmico, é muito difícil afirmar onde fica o que no que diz respeito à vida e à paixão de Cristo. Há um túmulo “de Jesus” católico e outro protestante. Como ter certeza de qual é o verdadeiro, se é que um dos dois é? Em todo caso, o indivíduo que deu a entrevista disse ter tido uma experiência com Deus tão forte que nunca será o mesmo. Certamente o seu testemunho ajudou promover o próximo grupo que irá para Israel na caravana onde ele estava, o que vai render um bom dinheiro para seus organizadores. Sim, porque pastores que levam grupos para Jerusalém comumente ganham uma passagem de graça para cada quatro peregrinos pagantes. Só que vendem todas. É uma fonte de lucro absurdo para os que querem promover uma “experiência forte”, andando por onde Jesus – supostamente – andou.
Venho de uma tradição pentecostal. Os meus antepassados recentes tinham um ditado: “O homem com uma experiência sempre vence o que apenas tem uma explicação”. A história do movimento pentecostal do século 20 se pautou por essa cartilha. Afinal, na virada do século 19 para o 20, muitos jovens filhos de pastores, de grande promessa, foram enviados à Universidade de Princeton com o objetivo de se preparar para o ministério. Naquele período, era a instituição de estudos teológicos mais prestigiada dos Estados Unidos. Foi uma época infeliz, durante a qual o liberalismo alemão do acadêmico luterano Rudolf Bultmann tinha se infiltrado nos quadros daquele seminário. Com isso, muitos desses jovens voltaram para casa desiludidos. Não criam mais no sobrenatural. Tinham aprendido a demitologizar a Bíblia, tirando o aspecto transcendente que a hermenêutica dos liberais havia ensinado ser fantasioso e fruto de propaganda de um grupo de autores que queriam “endeusar” o seu rabino, Jesus de Nazaré.
Graças ao esforço do ministro presbiteriano J. Gresham Machen, houve uma ala da Igreja que se afastou do liberalismo teológico e estabeleceu um seminário alternativo e até uma nova denominação. Foi assim que nasceu o Westminster Theological Seminary, um dos melhores do mundo atual, e a Presbyterian Church of America (PCA). Mas nem todos enveredaram por uma defesa informada dos fundamentos da fé. Muitos simplesmente concluíram que o ensino tinha apagado o Espírito, agarrando-se ao versículo “porque a letra mata, mas o espírito vivifica” (1 Co 3.6), utilizado fora de contexto. Para esses, o mover de Deus era a única coisa que realmente importava para alguém ser uma pessoa cheia do Espírito. Com pouca instrução, aqueles pastores piedosos, mas equivocados, inauguraram um século de ênfase na experiência acima do conhecimento de Deus transmitido a nós por meio da sua Palavra Sagrada e revelada.
Não sou adepto da Teologia Liberal, não creio nem um pouco nela. Mas também não me deixo levar pelo emocionalismo destituído da razão. Essa posição, inaugurada pelo pentecostalismo do século 20, acabou achando eco em toda a Igreja evangélica e chegou ao seu auge na ala neopentecostal, que, de certa forma, abandonou quase por completo a disciplina do estudo das Escrituras e das tradições milenares do Corpo de Cristo para se lançar numa verdadeira festa de emoções. Muitas das músicas entoadas hoje em dia sofrem por uma total falta de conteúdo confessional mas são tidas como “inspiradas por Deus” porque promovem “uma experiência” com Ele.
Mas nem toda experiência é movida pelo Espírito. Há meios pelos quais é perfeitamente possível provocar um falso mover de Deus – utilizando a música certa, o tom de voz correto, a iluminação adequada e outros recursos que acabam promovendo uma comoção individual e coletiva. Só que temos de entender que uma profunda emoção em culto público não é prova da presença de Deus, nem tampouco de uma proximidade do Senhor. Conhecer o Altíssimo é algo que adentra todos os âmbitos da nossa vida. Muitos só “conhecem” o Deus cultuado. Mas não conhecem Deus no seu lar, porque nunca o envolveram na sua vida pessoal. Não conhecem Deus no seu trabalho, porque vivem como ímpios no seu dia a dia. Não conhecem Deus simplesmente porque não o buscam diariamente nas Escrituras e na oração de portas fechadas. Seu “conhecimento” de Deus não passa de uma experiência em massa, promovida, vez por outra, por pessoas que sabem promover esse “enlevo” sem que haja necessariamente a presença real do Mestre.
É possível conhecer Deus? Claro. Mas, isso requer de cada um de nós um silêncio íntimo, uma vida de estudo, anos de inúmeras pequenas obediências, além de perseverança na fé. Uma vida movida por “experiências com Deus”, é uma vida sem fortes fundamentos e não passará na prova do tempo. Só quem ouve as palavras do Mestre e as obedece verá sua casa de pé após a tempestade (Lc 6).
Nunca devemos nos esquecer: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus.” (Sl 46.10). Após um enorme período de sofrimento, Jó teve um encontro com Deus. Gozo não encheu o seu coração. Mas ele mesmo disse: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem. Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza.” (Jó 42.5,6). Não me parece que ele teve uma experiência agradável. Sua reação foi de profundo arrependimento. Gozo não é o fiel da balança. A festa nem sempre é o lugar de encontro com o verdadeiro Deus. Sem trovões, terremotos ou vendavais, Elias soube que, para ouvir o Senhor, ele teve de esperar o cicio suave. Intimidade com Deus é difícil durante o solo de guitarras estridentes ou de palmas ensurdecedoras. Frequentemente, o conhecemos melhor enquanto lemos a Bíblia Sagrada, em lágrimas e na sua presença silenciosa e gentil.
Na paz,
+W