Por James Boice
Os reformadores tiveram também outro problema além de ter de lidar com as tradições corruptas de Roma. Quando a Reforma teve início e as pessoas começaram a descobrir a Palavra de Deus, alguns grupos caíram em uma espécie de subjetivismo que levou a vários tipos de excessos. Esses excessos eram justificados com base na alegada liderança do Espírito Santo. As pessoas argumentavam: “Bem, nós somos homens cheios do Espírito, e o Espírito Santo nos disse isso e aquilo. Portanto, isso é o que vamos fazer.” E eles o faziam sem qualquer fundamento verdadeiro na Palavra de Deus.
E os reformadores responderam que verdadeiramente o Espírito precisa operar em nós para podermos entender a Palavra de Deus, mas a Palavra de Deus é exatamente as Escrituras e, portanto, o Espírito opera para iluminá-la. A Bíblia é a base objetiva, por assim dizer, e o Espírito é Aquele que opera para que possamos entendê-la e aplicá-la às nossas vidas. Sempre que a Igreja separa esses dois elementos, ela se envolve em problemas. De maneira semelhante, hoje temos uma espécie de subjetivismo extremamente perigoso.
Ouvi um exemplo particularmente extremo desse subjetivismo vários anos atrás, quando estava na Costa Oeste. Encontrava-me na região de São Francisco em uma tarde de sexta-feira, para uma reunião regional do ICBI; as reuniões começaram naquela noite. Eu dirigia o carro quando liguei o rádio para ouvir os acontecimentos do dia. Enquanto procurava as estações, fui interrompido pelo som de sinos de igreja — sinos de igrejas sonoros e adoráveis. Pensei: Talvez seja o culto vespertino na Catedral da Graça, em São Francisco. Vou escutar. Então, parei. Não era o culto vespertino, era uma gravação. Era a introdução de um programa de entrevistas por telefone, com a chamada: “Você já teve uma experiência espiritual?” A proposta era colocar pessoas no ar que desejassem compartilhar uma experiência espiritual com os ouvintes.
Ouvi dois relatos enquanto escutava o programa. Aparentemente, um deles era de uma jovem que residia no norte do Estado. Um dia, ela sentiu que deveria sair de casa e viajar para o sul ao longo da costa. Na verdade, ela sentiu que deveria pedir carona na rodovia costeira até chegar a aproximadamente meio caminho entre São Francisco e Los Angeles. Então, quando percebeu que havia chegado ao lugar certo, pediu ao motorista para parar. Ela saiu do carro e desceu a encosta em direção ao oceano, onde encontrou uma caverna.
Ela passou a explicar como acampou durante três dias, levantando-se diariamente para nadar, misturando-se com as algas e tendo uma espécie de experiência espiritual. Depois disse que por volta do terceiro dia um animal apareceu e seguiu em determinada direção. Ela tomou isso como um sinal de que era hora de ir embora. Então, voltou a subir a encosta, pegou carona de volta para casa, e essa fora a sua experiência espiritual. Essa foi a primeira ligação.
A segunda ligação que ouvi foi ainda mais bizarra. Esta aparentava ser uma mulher mais velha. O fato ocorrera na época que Jimmy Carter e Ronald Reagan concorriam à presidência dos Estados Unidos. Essa mulher descreveu o que lhe aconteceu no dia da eleição. Ela começou dizendo:
— Tinha sido democrata a minha vida toda e fui para o local de votação na expectativa de votar em Jimmy Carter.
— Mas — continuou ela — quando entrei e fecharam a cortina, algum poder estranho apropriou-se de mim e, não sei por que, apertei a opção de votar em Ronald Reagan.
Ela não disse se pensou que a experiência era benigna ou demoníaca, mas, como ela era democrata, acho que estava sugerindo ter sido uma experiência demoníaca!
Embora seja um pouco engraçada naquele contexto, a experiência dela não é muito diferente do tipo de coisas que se ouve em igrejas evangélicas. A pergunta que surge é se esse é ou não o modo como Deus realmente fala. Em outras palavras, Deus utiliza maneiras subjetivas e sobrenaturais, como nos relatos das duas ligações?
Os reformadores diziam: “Não.” Eles admitiriam que Deus poderia ordenar as circunstâncias de maneira especial, mas queriam enfatizar o fato de que Ele fala na Bíblia e, portanto, o modo a ser guiado por Deus vem da sua Palavra. Nós nos aproximamos da Palavra e, em seguida, oramos e permitimos que o Espírito Santo de Deus dê às nossas mentes humanas a compreensão do que lemos. A partir do poder de iluminação do Espírito Santo, encontramos na Bíblia os princípios necessários para viver uma vida piedosa.
Isso me faz recordar outra história sobre Lutero. Após ter traduzido a Bíblia para o alemão e sua tradução ter se tornado muito popular, frequentemente traziam-lhe cópias de sua tradução da Bíblia para autografar. Muitas vezes, Lutero usava essa situação como uma oportunidade para pregar. Ele escrevia um versículo na Bíblia e, em seguida, fazia um pequeno sermão com base naquela passagem. Alguns desses registros sobreviveram; lembro-me de um em particular.
Em certa ocasião, Lutero escreveu o versículo de João 8.25 em uma Bíblia, que diz: “‘Quem é você?’, perguntaram eles. ‘Exatamente o que tenho dito o tempo todo’, respondeu Jesus.” Então, Lutero escreveu o seguinte:
Eles, isto é, aqueles que fazem a pergunta, desejam saber quem Ele é e não considerar o que Ele diz, enquanto Ele quer que eles primeiro ouçam e depois saberão quem Ele é. Portanto, a regra é: ouça e deixe a palavra fazer o trabalho. Então, o conhecimento virá agradavelmente. Se, porém, você não escutar, nunca saberá coisa alguma. Porque está decretado que Deus não será visto, conhecido ou compreendido exceto unicamente por meio da sua Palavra. Portanto, qualquer coisa que alguém faça pela salvação sem a Palavra é em vão. Deus não responderá a isso, não aceitará, não tolerará outra maneira. Portanto, permita que o seu livro, no qual Ele fala com você, seja recomendado a você, porque Ele não o fez ser escrito sem um propósito. Ele não quis que ficássemos estirados, em descaso, como se estivesse falando com camundongos sob o banco ou com moscas no púlpito. Devemos lê-la, pensar e falar sobre ela, e também estudá-la, certos de que Ele mesmo, e não um anjo ou uma criatura, está falando conosco nela.
Essa compreensão de sola Scriptura é muito necessária na Igreja de hoje. Se, por um lado, queremos evitar ser cativados por nossas tradições e, por outro lado, evitar os excessos provenientes de uma experiência essencialmente subjetiva (que penso ser o erro mais comum hoje em dia), há uma coisa que precisamos fazer: ouvir a Deus falando em sua Palavra.