Se todo o empreendimento cultural é fruto de um compromisso religioso, tudo o que o descrente produz deve ser rejeitado por se comprometer com a apostasia?
Nossa resposta deve ser NÃO! Isso porque temos que considerar a chamada graça comum.
Tomamos emprestado a definição simples de Wayne Grudem:
Graça comum é a graça de Deus pela qual Ele dá às pessoas bênçãos inumeráveis que não são parte da salvação.[1]
O adjetivo comum diz respeito àquilo que é concedido a toda humanidade, independentemente da confissão religiosa. Diferentemente da graça salvadora, a graça comum não tem o poder de regenerar o coração, mas permite que o ser humano, em seu estado natural de pecado, expresse a verdade, a bondade e a beleza presentes na realidade criada por Deus.
Como bem resume mais uma vez Grudem:
A graça comum é diferente da graça salvadora quanto aos resultados (ela não traz salvação), seus destinatários (é dada aos crentes e descrentes igualmente) e sua fonte (ela não flui diretamente da obra expiatória de Cristo, visto que a morte dEle não obtém nenhuma medida de perdão para os descrentes e, portanto, nem os crentes nem os descrentes fazem jus às suas bênçãos).[2]
Esse conceito é importantíssimo ao considerarmos nossa relação com o mundo ao nosso redor, com a cultura.
A doutrina da graça comum diz que mesmo os incrédulos podem ter algum conhecimento da verdade, mesmo que satanás seja o “pai da mentira”. O próprio Paulo citou pensadores pagãos afirmando que suas palavras eram verdadeiras (por exemplo, Tt.1.12-13).
Todo benefício que temos hoje no campo da medicina, tecnologia, entre outros, são fruto da graça comum. Toda expressão de beleza nas artes é fruto da graça comum. Toda obediência às leis, todo o ordenamento social que traz paz e prosperidade é fruto da graça comum.
Portanto, devemos ser cautelosos e não rejeitar aquilo que é bom, belo e verdadeiro somente porque não foi obra de um cristão piedoso. Devemos receber com gratidão as coisas boas que os descrentes fazem, mantendo, porém, a mente atenta para aquilo que não é verdadeiro, bom e belo.
Como escreveu o Pr. Augustus Nicodemus:
Não existe cultura neutra, isenta, pura e inocente. Ela reflete a situação moral e espiritual das pessoas que a compõem, ou seja, uma mistura de coisas boas decorrentes da imagem de Deus no ser humano e da graça comum, e coisas pecaminosas resultantes da depravação e corrupção do coração humano. Toda cultura, portanto, por mais civilizada que seja, traz valores pecaminosos, crenças equivocadas, práticas iníquas que se refletem na arte, música, literatura, cinema, costumes e tudo mais que a compõe
É correto dizer, à luz do que vimos até agora, que a graça comum serve de freio para o pecado, permitindo que descrentes produzam coisas verdadeiras, boas e belas.
Essa doutrina nos permite uma relação de diálogo com a cultura, identificando pontos de contato com a fé cristã que podem servir de pontes para a apresentação do evangelho e nos liberta para apreciarmos e interagirmos com a cultura ao nosso redor.
Todavia, lembremo-nos de que que há igualmente uma relação de antítese entre a visão cristã de mundo e as visões apóstatas. Por isso, o cristão sábio jamais comprará o pacote fechado de qualquer pensamento, pois sabe que ali podem estar contidos elementos estranhos, por mais que haja muitos pontos de contato com o Cristianismo. Isso é particularmente importante ao analisarmos as ideologias.
Portanto, podemos concluir que não há uma área do conhecimento humano que não foi afetada pelo pecado, o que não quer dizer que haja alguma área do conhecimento humano que seja integralmente sujeita à mentira, que esteja inteiramente sob domínio de satanás.
O ser humano, por mais deformado que esteja, ainda é imagem e semelhança de Deus e, por esta razão, é capaz de formar famílias, escrever poemas, compor músicas, construir prédios, cultivar hortaliças, ir ao espaço, elaborar leis e produzir medicamentos. Por meio desses diversos empreendimentos culturais, Deus traz glória ao seu nome e benefícios ao mundo.
[1] Teologia Sistemática, Wayne Grudem, Editora Vida, págs. 297-304
[2] Idem.