“Chegada a noite, retorno para casa e entro no meu escritório; na porta, dispo a roupa quotidiana, cheia de barro e lodo, visto roupas dignas de rei e da corte e, vestido assim condignamente, penetro nas antigas cortes dos homens do passado onde, por eles recebido amavelmente, nutro-me daquele alimento que é unicamente meu, para o qual eu nasci; não me envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes das razões de suas ações.”
Carta de Maquiavel (sim, ele mesmo!) a Francesco Vettori.
Desde o ano passado que exerço as funções de tutor de uma turma de jovens homeschollers, os quais seguem o currículo clássico e cristão denominado Classical Conversations.
Uma das bênçãos advindas dessa atividade é a oportunidade de ler os grandes clássicos da literatura mundial e brasileira. Só este ano a turma lerá cerca de 20 livros e muitos textos avulsos de diversos gêneros literários, desde leis até poemas e discursos.
A citação em epígrafe é uma bela e exata descrição da nossa postura ao abrirmos diálogo com as grandes mentes do passado, seja para delas se alimentar, nutrindo nossa alma, seja para rejeitar o prato servido naquilo que conflitar com a cosmovisão cristã.
De uma forma ou de outra, é preciso dizer que cristãos se dedicam pouco à literatura, muito embora nela seja possível encontrar tesouros da graça comum de Deus que nos elevam às alturas da beleza, afiam nossas mentes e enchem nossos corações de sensações tão diversas quantos são os cenários, enredos e personagens.
Na lição do crítico literário Rodrigo Gurgel: “um clássico é uma obra que ultrapassa seu tempo, não por ser de vanguarda, mas porque seu conteúdo trata de questões que são essenciais para o gênero humano (…) São obras abertas à complexidade do homem, do mundo, da história. São obras nas quais o leitor sempre poderá encontrar uma explicação para o sentido da sua própria vida, que sempre ajudarão o leitor a enfrentar o complexo exercício de viver — e também divertem, empolgam, emocionam. Livros assim provocam efeitos singulares na mente dos leitores. Marcam nossa vida. Iluminam nossa vida.”
É na experiência de leitura de um clássico que exercitamos uma habilidade tipicamente humana, a imaginação (aqui concebida como formação de imagens mentais). É ela que nos faz transcender nossas circunstâncias presentes, engajando-nos em um exercício vital para o desenvolvimento do nosso poder criativo, sendo este o poder compartilhado por Deus com aqueles que foram criados à sua imagem e semelhança.
Todavia, mais que aguçar a capacidade de criar imagens, a literatura robustece nossa imaginação moral, que pode ser definida como “a capacidade de conceber os mais variados e profundos dilemas morais enfrentados pelo homem sem a necessidade de os vivenciar em primeira pessoa.”
Ou seja, aplica-se aqui uma regra popular de sabedoria que é a de se aprender com outros, ainda que estes outros sejam personagens fictícios. E por que isso é possível? O professor Carlos Nadalim responde: “existe uma natureza humana comum a todos os homens; no fundo de toda a variedade da experiência humana, há verdades permanentes e leis universais que podem ser conhecidas e expressadas em termos de linguagem humana, ainda que de maneira imperfeita.”
Na literatura dos clássicos vemos, de acordo com Nadalim, “essa permanência no fundo de toda a variedade da experiência humana. Os grandes escritores aliaram, à percepção dessa realidade, a arte de falar de maneira memorável sobre as coisas permanentes, criando símbolos que ficaram eternizados na literatura de ficção que produziram. Por meio da alta literatura de ficção, desenvolvemos uma consciência normativa, ou seja, uma consciência sobre o que é ser verdadeiramente humano.”
Sem a literatura, ensina Lionel Trilling (1905-1975), “a imaginação encolhe, e nem a mais sólida erudição acadêmica, bem como o mais completo domínio de bibliografias especializadas, poderá compensar uma imaginação moral atrofiada.” Em outras palavras, para uma formação completa, que ultrapasse os limites contemporâneos das especializações técnicas, importa que sejamos conduzidos aos amplos salões da imaginação moral que só encontramos na ficção clássica.