Fé e obras (Tiago 2.14-26)
Chegamos ao auge do argumento teológico da epístola de Tiago – a famosa discussão do relacionamento entre fé e obras. Embora a passagem em questão seja uma das mais importantes das Escrituras no tocante ao assunto da verdadeira fé cristã, infelizmente, as palavras de Tiago aqui tem sido bastante negligenciadas e mal interpretadas em nossos tempos. Consideremos, então, como Tiago descreve o casamento indissolúvel entre esses dois elementos distintos, porém, inseparáveis da verdadeira vida cristã.
Fé sem obras está morta (Tg 2.14-17,26)
Por toda a sua carta, o apóstolo Tiago conduz os seus leitores a um autoexame da sua fé em Cristo e da sua vida em Cristo. Diante das provações e privações que as ovelhas de Tiago enfrentavam, a tentação de praticar uma fé meramente nominal escondida dos olhos dos perseguidores e opositores do Evangelho era cada vez maior. Além do mais, os leitores de Tiago se viam fortemente tentados a favorecer justamente aqueles membros abastados da sociedade romana que os oprimiam – possivelmente para aliviar a oposição e perseguição que sofriam – ao mesmo tempo em que desprezavam os mais pobres em seu meio (Tg 2.1-13).
Após confrontá-los com a imparcialidade do amor de Deus e a necessidade de praticar o verdadeiro amor cristão, surge a questão: “Por que seremos julgados pelas obras? Não somos salvos pela fé somente?”
Felizmente, o apóstolo Tiago já tinha respondido esta questão. Desde o início ele defende que somos salvos pelo poder da Palavra de Deus e do Evangelho de Cristo – não pelas nossas obras, mas pela obra do Senhor em nosso favor (Tg 1.16-18,21). Portanto, somos herdeiros do Reino de Deus pela fé em Cristo somente (Tg 2.1,5). A questão que Tiago deseja responder agora não é se somos salvos pela fé, mas que tipo de fé demonstra que somos salvos. Como disse Calvino: “Somos salvos pela fé somente, mas não pela fé que vive só.”
Portanto, Tiago alerta seus leitores que uma fé meramente confessada mas não praticada não pode salvar, pois está morta, assim como o corpo sem espírito está morto (Tg 2.14,17,26). De nada vale um discurso religioso desprovido de uma conduta compassiva e misericordiosa diante da necessidade do próximo, especialmente daquele que compartilha da mesma fé em Cristo (Tg 2.15-16; cf. Is 58.6-9; Mt 25.31-46; Gl 6.9-10). Se apenas falarmos do amor de Deus, mas não praticarmos este amor, é sinal de que, de fato, nunca conhecemos e experimentamos o amor de Deus (1Jo 3.17,18). Tal “fé”, diz Tiago, é morta e não salva porque nunca experimentou da graça do Evangelho de Jesus Cristo.
Fé sem obras é inútil (Tg 2.18-19)
Os possíveis opositores de Tiago poderiam argumentar que “fé” e “obras” correspondem a dons distintos entregues a membros distintos da Igreja. Enquanto alguns exercem “fé”, outros praticam “obras”, sustentando assim a divisão entre crentes nominais e crentes praticantes que tem marcado a vida de muitos dentro da Igreja desde o primeiro século.
Contudo, Tiago propõe dois testes simples para dissipar esta falsa distinção entre fé e obras. Primeiramente, como alguém pode demonstrar a sua fé sem obras? Poderia alguém, por exemplo, demonstrar sua lealdade à sua pátria, sua família ou seus amigos sem posturas e ações condizentes com tal lealdade? Semelhantemente, pode alguém se dizer crente e confiante no Senhor Jesus Cristo sem demonstrar um padrão de vida que condiga com a sua fé? Por outro lado, diz Tiago, são as obras que corroboram a nossa fé salvadora no Senhor Jesus Cristo. (Tg 2.18)
Em segundo lugar, crer num único Deus – um marco da religião de Israel no Antigo Testamento e do próprio ensino do Senhor Jesus Cristo (cf. Dt 6.4; Mt 22.37) – sem, porém, lhe obedecer, era inútil. Até mesmo os demônios creem que existe um só Deus e ao menos tremem diante do Senhor! A fé sem obras, portanto, é tanto inútil como está morta.
Fé com obras justifica e salva (Tg 2.20-25)
Finalmente, chegamos ao ponto mais controverso do argumento da carta. Aparentemente, na tentativa de defender e estimular um Cristianismo praticante e não apenas nominal, o apóstolo Tiago cria um ponto de tensão com o apóstolo Paulo acerca da justificação pela fé somente. Será que os apóstolos entraram em contradição ou será que seus argumentos se complementam?
A verdade é que Paulo e Tiago escreveram para audiências diferentes vivendo desafios diferentes. Enquanto Paulo escreveu para igrejas fortemente influenciadas pelo legalismo judaico e carentes de esclarecimento quanto à salvação pela graça mediante a fé, Tiago escreveu para cristãos influenciados pelo antinomismo que rejeitava toda e qualquer submissão às exigências morais e espirituais das Escrituras e, portanto, carentes da lembrança de que somos salvos mediante a fé para as boas obras. (cf. Ef 2.8-10)
Além do mais, Paulo e Tiago usaram termos iguais, porém com sentidos diferentes. Quando Paulo fala da justificação pela fé, a “fé” que justifica é aquela confiança simples, genuína e exclusiva na obra consumada de Cristo em favor da nossa salvação (Rm 3.28; 4.1-3; Gl 2.16). Contudo, quando Tiago condena a “fé” sem obras, ele condena aquela fé vazia e inconsequente que não se expressa numa vida piedosa condizente com a confiança em Cristo (Tg 2.14-19).
Por fim, quando Paulo descreve a nossa justificação em Cristo, ele fala da nossa absolvição inicial e definitiva no momento em que primeiro cremos no Senhor Jesus Cristo para a remissão dos nossos pecados (Rm 3.28; 5.1-2; 8.1). Contudo, Tiago trata da repercussão dessa declaração do Senhor sobre as nossas vidas, demonstrando pelo nosso padrão de vida que de fato cremos no Senhor e que teremos nossa justificação ratificada no Último Dia (Tg 2.12-13,24).
Assim como tanto Abraão como Raabe creram e, por terem crido no Senhor, foram justificados pela graça de Deus, eles obedeceram ao Senhor e foram reconhecidos pelo testemunho da sua fé (Tg 2.20-25; cf. Hb 11.8-19,31). Pelo contrário, se eles não tivessem obedecidos ao Senhor, não teriam demonstrado que verdadeiramente confiaram e renderam-se ao Senhor, permanecendo mortos em seus pecados e carentes da salvação.
Portanto, só existe um caminho para ser salvo – tanto para o patriarca Abraão como para a prostituta Raabe, tanto para pessoas muito religiosas ou nada religiosas, muito morais ou muito imorais – o caminha da graça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para uma vida de obediência absoluta e irrestrita ao Senhor.
Para reflexão:
- O que é o Cristianismo nominal? Como ele é diferente do Cristianismo praticante? Diante do crescimento significativo da Igreja evangélica, como podemos avaliar tal crescimento? Este crescimento tem gerado um Cristianismo meramente nominal ou um Cristianismo praticante?
- Qual é o grande perigo e engano da fé meramente professada, mas não praticada? Como a nossa sociedade percebe a divergência entre o discurso e a prática da Igreja? Como a própria Igreja enxerga a distância entre a sua fala e a sua conduta? Como o argumento de Tiago nos ajuda a vigiar contra uma fé de palavra apenas, mas não de prática amorosa e ação misericordiosa?
- Qual é o proveito de crer corretamente em Deus sem viver corretamente com Deus? Qual é o proveito de possuir uma teologia bem construída e alicerçada na Palavra de Deus sem que esta teologia possua toda a nossa vida? De que adianta crer no Evangelho sem viver à luz do Evangelho?
- Como a fé e as obras trabalharam conjuntamente nas vidas de Abraão e Raabe? Como seus exemplos servem de exemplo para as nossas vidas?
- Em última instância, as obras de Abraão e de Raabe foram suficientes para salvá-los? Será que as nossas obras, por mais sinceras e numerosas que possam ser, são capazes de nos absolver e justificar perante o Senhor?
- Examine a sua vida e, especialmente, o seu testemunho cristão e identifique em que áreas a sua conduta não tem sido condizente com a sua fé. Confesse seus pecados perante o Senhor e suplique pelo seu perdão. Ao identificar palavras, posturas e atitudes em sua vida divergentes da sua fé em Cristo, peça ao Senhor em oração que Ele te corrija, te instrua e te capacite para viver plenamente à luz da sua fé em Jesus Cristo.