Durante onze anos trabalhei no Poder Judiciário Federal, no setor de execução penal. Uma das peculiaridades da execução na esfera federal é que o próprio apenado (condenado em processo criminal) comparece periodicamente à Vara a fim de comprovar o cumprimento das penas não restritivas de liberdade (doação de cestas básicas, prestação de serviços comunitários etc.). Nos atendimentos que fazíamos, ouvíamos histórias familiares, situações delicadas, dificuldades, vitórias, reclamações.
A situação peculiar desse tipo de processo me fez enxergar algo óbvio, porém importante, que contribuiu para uma mudança da minha visão sobre a própria prestação da justiça: por trás de cada processo há uma vida, um nome, uma história. Na maioria das vezes, um passo em falso deu ensejo ao processo criminal. Pessoas e famílias eram afetadas profundamente por uma decisão favorável ou não ao pleito pretendido, uma ordem de soltura ou de prisão. Pessoas, famílias, instituições e toda a sociedade são afetadas por um trabalho comunitário bem encaminhado ou pela doação de bens de consumo a entidades de assistência social. Esta experiência me fez refletir sobre a natureza da igreja e percebi algo igualmente óbvio e vital: por trás de cada iniciativa, projeto, departamento há pessoas, nomes, histórias…
Um parêntese: a comparação com os condenados acaba aqui, pois fomos libertos do pecado e da morte, não há condenação para os que estão em Cristo; e todo o nosso serviço parte de uma relação de servo do Senhor Jesus. Mas a verdade fundamental não se altera: a Igreja é composta por pessoas. Por que devemos nos lembrar disso? Deus não sonda arquivos de computador. Ele sonda os corações de pessoas. Deus não derrama do Seu Espírito sobre estruturas e departamentos e sim sobre pessoas. Deus não habita em prédios, galpões e sim em meio aos louvores de seu povo.
No final da carta aos Romanos, Paulo cita nomes de pessoas reais (Priscila, Áquila, Epêneto, Junias, Maria, Urbano, Ampliato etc.). Um nome revela intimidade. Quando Deus se apresentou a Moisés, fez questão de frisar que não havia revelado seu nome aos patriarcas, mas agora, como uma nova etapa de sua revelação, declara que seu nome era “EU SOU”. O nome de Deus dito a Moisés era a prova de um relacionamento íntimo e parte fundamental da revelação de seu caráter. Paulo conhecia aquelas pessoas, o que pode ser percebido pelas qualificações: notáveis, amado, cooperador, mãe para mim.
Essas mesmas qualificações mostram outra verdade fundamental: ninguém faz igreja sozinho. Refiro-me aos líderes. Paulo precisou de ajuda; ele não estava só nas lutas e nas tribulações. Muitos o abandonaram, é fato (Ver 2Tm), mas outros labutaram ao seu lado. Precisamos uns dos outros. Essa outra verdade fundamental na igreja é relembrada pelo apóstolo na própria carta as Romanos, nos capítulos imediatamente anteriores. Ao relacionar nomes e qualificações, Paulo faz do ensino sobre a Igreja algo vivo e não apenas uma ideia ou um projeto. Isso faz soar o alerta quando vemos pessoas entrando e saindo dos templos lotados por causa de uma campanha, de um programa, de um evento.
Um missiólogo norte-americano disse certa vez: “A Igreja nasceu como um fato na Palestina; veio para a Grécia e tornou-se uma ideia, foi para Roma e tornou-se uma instituição, foi para os EEUU e tornou-se um empreendimento, veio para o Brasil e tornou-se um evento”. Que triste realidade!
Por fim, é interessante notarmos que essa relação de nomes (que revela intimidade), relacionamentos profundos e interdependência, constitui o fechamento daquela carta que é tida como o grande tratado teológico do NT. O que isso nos ensina? Teologia deve ser feita em prol da Igreja, para bênção do povo. Paulo fazia teologia no contexto da atividade missionária, pastoral e discipuladora. Ele não teorizava. Suas páginas são marcadas tanto pelo brilhantismo do conhecimento, como pela devoção ao Senhor, tanto pelo argumento irrefutável, quanto pelos chicotes, naufrágios e perseguições. O apóstolo não ficava em sua torre de marfim, mas respirava o ar ameaçador de Jerusalém, sentia o revolver das entranhas pela idolatria de Atenas, experimentou o isolamento e a insalubridade da prisão em Filipos.
Jesus não veio ao mundo defender uma causa ou propagar uma ideia, veio para buscar e salvar os perdidos; não veio para fundar uma instituição, mas para anunciar a chegada de um Reino que não é deste mundo; não veio apenas para dar um bom exemplo, mas para dar sua vida em resgate de muitos.
Jesus olhou para as multidões e teve compaixão delas; ele ensinou com paciência e misericórdia e ainda multiplicou pães e peixes; treinou e enviou 70 para pregarem o Reino e expulsarem demônios; recrutou 12, que seriam chamados de fundamento, juntamente com os profetas; dedicou especial atenção a 3 – Pedro, Tiago e João – aos quais revelou sua glória no Monte da transfiguração; não esqueceu que um indivíduo merece tempo e atenção, como no caso da mulher samaritana e de Nicodemos, relatados no evangelho de João. Cristo se dirigiu tanto a grupos maiores quanto a uma única pessoa.
Na missão e na vida do Senhor Jesus e na missão e na vida do apóstolo Paulo encontramos a verdade simples e radical de que Igreja são pessoas, que juntas adoram, servem e obedecem a Deus; que juntas crescem, auxiliam e semeiam.
Vejamos, por fim, o exemplo de Lourenço de Huesca, um dos 7 diáconos do bispo de Roma, Sisto II, no século III. Diante da perseguição do Imperador Valeriano, o prefeito local exigiu de Lourenço os tesouros da Igreja. Para tanto, o diácono pediu um prazo, o qual foi suficiente para reunir no átrio da igreja os órfãos, os cegos, os coxos, as viúvas, os velhos… todos os que a Igreja socorria, e no fim do prazo, com bom humor, disse: “Eis aqui os nossos tesouros, que nunca diminuem, e podem ser encontrados em toda parte”. Sentindo-se iludido, o prefeito sujeitou Lourenço a diversos tormentos. Ele sofreu o martírio em 258.
Que Deus abençoe seu povo, sua igreja!