Para entendermos o dízimo, temos que voltar ao início. Há uma regra na formulação de conceitos doutrinários que se chama “a lei da primeira referência”. Essa lei simplesmente afirma que, para compreender uma doutrina, uma palavra ou um conceito bíblico, temos que prestar atenção especial à primeira vez que ela aparece nas Escrituras. No tocante ao assunto de ofertas, temos que entender que a primeira referência bíblica sobre o tema se acha na primeira referência bíblica do culto a Deus. Os dois conceitos estão ligados. Abel e Caim cultuaram a Deus trazendo-lhe ofertas. No caso de Caim, a oferta foi da sobra da sua colheita. No caso de Abel, a oferta representou as primícias. Primícias são a primeira e melhor parte da nossa renda, do nosso lucro, por assim dizer. Culto a Deus envolve, portanto, uma entrega de algo que materialmente nos pertence. É um gesto de gratidão, de reconhecimento do fato de que tudo provém de Deus e, em última análise, pertence a Deus.
Foi o que aconteceu após a batalha que Abraão travou com os reis. Ele trouxe e ofertou o dízimo do espólio a Melquisedeque – servo do Deus altíssimo (Gn 14 e citado em Hebreus 7). É notável que esse dízimo antecedeu a lei mosaica e levítica, que o tornou obrigatório. Mas por que o dízimo se tornou obrigatório?
Vejamos que todas as tribos receberam uma parcela da terra prometida. Terra lhes garantia não somente lugar para sua habitação, mas, também, sustento material. Como uma sociedade agrária, terras permitiam plantio, colheita e criação de gado. Todos esses benefícios redundavam em sustento para o povo de Deus. Mas houve uma tribo que não recebeu terra. Era uma tribo que serviria a Deus e como sacerdotes entre Deus e o povo, a de Levi. Eles, portanto, não teriam como se sustentar. Para que não passassem necessidade, foi imposto sobre todas as outras tribos um dízimo, que seria pago aos servos de Deus que conduziriam o culto a Jeová e ministrariam em favor do resto do povo. Seu sustento era tido como legítimo. Não seriam voluntários, até porque não lhes foi legado uma terra pela qual poderiam prover o seu próprio sustento.
Israel foi fiel até um certo ponto. Mas, com o tempo, deixaram de honrar os seus irmãos, os sacerdotes da nação. Foi nesse contexto que Malaquias proferiu a tão citada acusação contra o povo de Deus. Teriam “roubado” dEle, nos dízimos e nas ofertas. Sua obrigação na aliança entre Deus e o seu povo, compreendia o mantimento para a “Casa de Deus” (Ml 3.10). Literalmente os servos de Deus passavam fome por causa da infidelidade dos detentores de terras na Palestina. Deus não tinha dado aos levitas meios de se sustentar, fora os proventos sacerdotais que vinham necessariamente do dízimo das outras tribos. A nação tinha roubado de Deus e os seus servos passavam necessidade por isto.
Vivemos novos tempos. Hoje há pastores que mantém uma atividade rentável e que possibilita sua atuação sem que isto requeira um dízimo do povo. Paulo foi um fabricante de tendas e teve como se sustentar. Mas é essa a regra? É errado que um servo de Deus receba um salário pelo seu serviço sacerdotal? Afinal, somos todos sacerdotes perante o Senhor – nação de sacerdotes, como diz em 1 Pe 2.9: “Mas vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz.” Segue então que somos todos sacerdotes. Não existem mais “levitas”, os sem-terra de Israel. É errado que um ministro constituído e ordenado perceba um salário então? Isso não seria um convite ao ócio e, sendo assim, um pretexto, um engodo?
Paulo responde a essa pergunta com muita clareza. Na sua primeira carta ao seu discípulo Timóteo ele disse: “Os presbíteros que governam bem devem ser dignos de honra em dobro, principalmente os que trabalham na pregação e no ensino” (v. 17). A palavra “honra” pode também ser traduzida como “salário”, como é em outras traduções (estou usando a Almeida Século 21, atualmente). Mas para que não haja dúvida quanto à natureza dessa “honra”, ele segue em versículo 18, dizendo: “Porque a Escritura diz: Não amarres a boca do boi quando ele estiver debulhando; e: O trabalhador é digno do seu salário.” Nada mais claro, estamos falando de sustento físico, meios, finanças.
De onde, então provém o sustento dos líderes, presbíteros, governantes, mestres da Igreja? É certo que Paulo pressupõe uma fonte. Ele fala em outras ocasiões de ofertas. Ele mesmo fez questão de dizer que não precisava delas, mas agradeceu o recebimento das mesmas. Há indicação de que o culto ainda compreendia ofertas. Paulo mostrou que há uma economia divina em ação. Em 2 Co 9.7-14 temos uma expressão dele no que tange a sua gratidão pela generosidade dos santos. Também diz que cada um deve contribuir com alegria, pois Deus ama quem dá com alegria. O contexto, é claro, foi de prestar ajuda a irmãos na fé que estavam passando necessidade. Todavia, vemos que o ato de ofertar era praticado – e no contexto da Igreja.
Segue então. Até onde vai tal generosidade? Pode essa generosidade ser quantificada? E Jesus falou do dízimo? É lei? É obrigação? Ao criticar os fariseus, texto que achamos em Mt 23.23, Jesus disse: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e omitis o que há de mais importante na Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade; DEVÍEIS FAZER ESTAS COISAS, SEM OMITIR AQUELAS.” Jesus não aboliu o dízimo, mas o incluiu entre as coisas que devemos praticar, junto com a justiça, a misericórdia e a fidelidade.
Mas, convenhamos que o espírito da “obrigação” neotestamentária é outro. Pois o que era lei no passado passa a ser algo a ser praticado com alegria e por amor – tanto a Deus quanto aos que lideram e ensinam. Há uma dinâmica que entra em vigor na nova aliança. É a de dar e receber. É a de semear com generosidade e receber livremente. Jesus disse em Lucas 6.38: “Dai, e vos será dado; recebereis uma boa medida, cheia, generosa e transbordante; pois sereis medidos com a mesma medida com que medis”. Agora, o contexto fala de generosidade no que diz respeito ao trato do nosso próximo. Mas é uma lei que rege o fruto de um espírito generoso.
Creio que esse espírito de generosidade é um dos que identificam e caracterizam o povo de Deus. Creio também que não há fundamento para passar um sabão no povo, usando Malaquias 3. O espírito é outro. O dízimo é um prazer, um privilégio e uma maneira de garantir que os servos de Deus sejam duplamente remunerados, como convém (segundo Paulo).
Mas alguns não são duplamente remunerados. São 100 vezes remunerados, não dignamente, mas nababescamente. Digno é o trabalhador – especificamente, o líder na igreja. Infelizmente temos visto conselhos pagarem seus pastores muito mal. Não os tratam com dignidade. E esses são obrigados a viver mal e com um salário minguado. Ao mesmo tempo, há outros líderes em outros arraias que vivem com muito além do que convém.
O nosso problema de hoje não é com ofertas, nem com dízimos. Claro que o debate sempre cai sob essas rubricas. Mas o problema está na igreja. Há líderes que pouco inspiram amor e carinho. São déspotas que surram o povo com Malaquias 3 ou que prometem mundos e fundos com a lei de semeadura. Os dois estão errados. As ovelhas sofrem. Muitos fogem. E os anjos choram (frase minha, não bíblica).
Mas para os que acham uma boa igreja, um bom pastor, um bom mestre, esses têm a felicidade de exercer sua generosidade na sua casa de fé. Eu tenho sido muito abençoado por isso. Tenho experimentado a lei de semeadura em minha vida. Faço questão de dizimar. Os que congregam comigo partilham dessa alegria – a alegria de fazer parte de uma economia divina. Não há ressentimento, mesquinharia ou debates sobre se é do bruto ou do líquido. Hoje, o dízimo é uma oferta voluntária. Sem lei, Abraão fez isso perante Melquisedeque. No Novo Testamento continuamos a fazer disso um dos elementos do nosso culto a Deus. A Ele seja toda a honra e glória, pois dele é todo o ouro e toda a prata – até o ouro que aparentemente é “meu”.
Na paz,
+W