Aqui, temos de pensar sobre a difícil doutrina da reprovação, o ensinamento de que Deus rejeita ou repudia algumas pessoas para a condenação eterna de uma maneira paralela, mas oposta à sua ordenação de outros para a salvação. Temos de pensar aqui sobre isso porque o assunto é trazido à tona em Romanos 9 a partir de duas citações do Antigo Testamento: Malaquias 1.2,3 (“Amei Jacó, mas rejeitei Esaú”, citado no versículo 13) e Êxodo 9.16 (“Mas eu o mantive [Faraó] em pé exatamente com este propósito: mostrar-lhe o meu poder e fazer que o meu nome seja proclamado em toda a terra”, citado no versículo 17). Paulo resume o ensino contido nesses textos concluindo: “Portanto, Deus tem misericórdia de quem ele quer, e endurece a quem ele quer” (v. 18).
Deve-se partir da afirmação de que a reprovação é um fato, independentemente de qualquer pergunta que possamos ter. Em outras palavras, é obrigatório seguirmos para a reprovação o mesmo procedimento que seguimos para a eleição. Muitos textos ensinam a respeito da reprovação:
Provérbios 16.4. “O Senhor faz tudo com um propósito; até os ímpios para o dia do castigo.”
João 12.39,40. “Eles não podiam crer, porque, como disse Isaías noutro lugar: ‘Cegou os seus olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos nem entendam com o coração, nem se convertam, e eu os cure’.”
João 13.18. “Conheço os que escolhi. Mas isto acontece para que se cumpra a Escritura: ‘Aquele que partilhava do meu pão voltou-se contra mim’.”
João 17.12. “Enquanto estava com eles [os discípulos], eu os protegi e os guardei no nome que me deste. Nenhum deles se perdeu, a não ser aquele que estava destinado à perdição para que se cumprisse a Escritura.”
1 Pedro 2.7,8. “Para vocês, os que creem, esta pedra [Jesus Cristo] é preciosa; mas para os que não creem, ‘a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular’, e, ‘pedra de tropeço e rocha que faz cair’. Os que não creem tropeçam, porque desobedecem à mensagem; para o que também foram destinados.”
Judas 4. “Certos homens, cuja condenação já estava sentenciada há muito tempo, infiltraram-se dissimuladamente no meio de vocês.”
Cada um desses versículos (e outros) ensina que Deus pretere algumas pessoas, destinando-as à destruição em vez de salvação. Isso é bastante claro. Mas aqui precisamos fazer várias distinções importantes entre eleição e reprovação.
Em primeiro lugar, precisamos perguntar: Deus determina os destinos dos indivíduos exatamente da mesma maneira, de modo que, sem qualquer consideração sobre o que fazem (ou poderiam fazer), atribui um ao céu e o outro ao inferno? Sabemos que Ele faz isso no caso daqueles que são salvos, porque nos foi dito que a eleição não se baseia em qualquer bem visto ou previsto naqueles que são eleitos. O argumento principal de Paulo em Romanos 9 é que a salvação se deve inteiramente à misericórdia de Deus e não a qualquer bem que porventura se imagina residir em nós. A questão é se isso pode ser dito também acerca dos réprobos. Deus os designou ao inferno independentemente de qualquer coisa que eles tenham feito, isto é, independentemente de eles merecerem isso?
Há aqui uma distinção importante a ser feita, como eu disse. De fato, é uma distinção feita pela maioria dos pensadores reformados e que foi incorporada a muitos dos credos da Igreja. Tome a Confissão de fé de Westminster como exemplo primário. Aqui estão dois parágrafos referentes a eleição e reprovação:
Antes que a fundação do mundo fosse colocada, Deus, segundo o seu propósito eterno e imutável e o conselho secreto e beneplácito de sua vontade, escolheu em Cristo aqueles da humanidade que são predestinados para a vida, para a glória eterna, por sua mera livre graça e amor, sem qualquer presciência de fé ou boas obras, ou perseverança nelas (Cap. 3, Seção 5).
Quanto ao restante da humanidade, Deus se agradou, segundo o conselho inescrutável de sua própria vontade, pelo qual Ele concede ou recusa misericórdia conforme lhe apraz, para a glória do seu poder soberano sobre as suas criaturas, em preteri-la e ordená-la para desonra e ira por seu pecado, para o louvor da sua justiça gloriosa (Cap. 3, Seção 7).
Essas declarações ensinam que, de algumas maneiras, a eleição e a reprovação são a mesma coisa: as duas fluem do conselho eterno ou da vontade de Deus e não da vontade do homem, e ambas têm como objetivo final a revelação da glória de Deus. Mas há dois pontos divergentes importantes.
Primeiro, a Confissão fala do réprobo sendo “preterido”. Alguns argumentarão que, no seu efeito final, não há diferença entre ser preterido e ser deliberadamente ordenado para a condenação. Mas embora isso seja verdadeiro quanto ao efeito final, há, no entanto, uma grande diferença na causa. A razão pela qual alguns creem no Evangelho e são salvos por ele é que Deus intervém na vida deles para levá-los à fé. Ele o faz através do novo nascimento ou regeneração. Mas aqueles que estão perdidos — e esse é o ponto crucial — Deus não faz com que se tornem descrentes. Eles o fazem por conta própria. Para ordenar o seu fim, Deus só precisa reter a graça especial da regeneração.
Segundo, a Confissão fala de Deus ordenando os perdidos “para desonra e ira por seu pecado”. Isso torna a reprovação o oposto de uma ação arbitrária. Os perdidos não são enviados ao inferno porque Deus os condena a ele arbitrariamente, mas como julgamento por seus pecados. “Não ousamos esquecer”, escreveu Abraham Kuyper, “que embora Deus, segundo o segredo do seu conselho, elege aqueles que devem ser salvos… esse mesmo Deus onipotente nos tornou responsáveis moralmente, de modo que estamos perdidos, não porque não poderíamos ser salvos, mas porque não desejaríamos sê-lo”. A teologia de Kuyper baseava-se nos Cânones do Sínodo de Dort, que afirmam: “Não todos, mas somente alguns são eleitos, enquanto outros são preteridos nos decretos eternos” e estes são punidos “não somente por causa de sua descrença, mas também por todos os seus outros pecados” (Cap. 1, Art. 15). A eleição é ativa; a reprovação é passiva. Na eleição, Deus intervém ativamente para resgatar aqueles que merecem a destruição, enquanto na reprovação Deus permite passivamente que alguns recebam a punição justa que merecem por seus pecados.