Por Sam Storms
Ao servo do Senhor não convém brigar mas, sim, ser amável para com todos, apto para ensinar, paciente. Deve corrigir com mansidão os que se lhe opõem, na esperança de que Deus lhes conceda o arrependimento, levando-os ao conhecimento da verdade, para que assim voltem à sobriedade e escapem da armadilha do Diabo, que os aprisionou para fazerem a sua vontade – 2ª Timóteo 2.24-26
O apóstolo exorta o jovem Timóteo a ser gentil e paciente com as pessoas, na esperança de que Deus possa conceder-lhes o arrependimento que leva ao conhecimento da verdade. As pessoas são, por natureza, incapazes de se arrepender do seu pecado, não porque assim o desejam, mas por serem impedidas por Deus ou por circunstâncias que fogem do seu controle. Elas são incapazes de se arrepender porque é a sua natureza amar o pecado, não odiá-lo. Elas optam por não se arrepender; preferem persistir em seus caminhos pecaminosos e rebeldes.
Se uma pessoa deve se arrepender, ela precisa estar habilitada por Deus a fazê-lo. O arrependimento lhe deve ser “concedido” como um presente. Uma pessoa se arrepender ou não, diz Paulo, depende em última análise de Deus. Está nele e em seu beneplácito soberano dar ou reter aquilo que leva a “um conhecimento da verdade”. Que Deus não concede esse dom universalmente é óbvio. Se o arrependimento fosse algo que Deus dá a todos, dificilmente Paulo teria dito que “talvez” Deus possa conceder o arrependimento. Claramente, ele vislumbra a real possibilidade de que Deus possa não concedê-lo.
É importante notar que, no entendimento de Paulo, de modo algum a soberania divina minimiza a obrigação ética de Timóteo ou a urgência com que ele é exortado a cumpri-la. Paulo não diz: “Relaxe, Timóteo, não se preocupe sobre como você age. Afinal, essas pessoas se arrependerem ou não está nas mãos de Deus, não nas suas. Então, sossegue e faça o que quiser.” Paulo sabia que o amor paciente de Timóteo poderia muito bem ser um meio utilizado por Deus para a concessão do arrependimento em graça. Assim, mais uma vez vemos que a antecedência da soberania divina não exclui a importância moral ou a necessidade da vontade humana.
Não se deixe enganar por declarações equivocadas sobre os ensinamentos do Calvinismo. A ideia do Calvinismo não é como se os pecadores contritos e arrependidos se pusessem diante de Deus suplicando que Ele lhes concedesse arrependimento, mas Deus, preso ao seu decreto cruel, se recusasse a dar ouvido ao pedido deles. Não há “nenhum justo”, diz Paulo, “nem um sequer”. Não há “ninguém que entenda”, não há “ninguém que busque a Deus” (Rm 3.10,11). Se alguém se arrepender, será salvo. Mas ninguém se arrependerá, a menos que Deus lhe conceda o arrependimento em sua graça.
Essa verdade fundamental ecoa em Atos 11.18, onde lemos: “Ouvindo isso, não apresentaram mais objeções e louvaram a Deus, dizendo: ‘Então, Deus concedeu arrependimento para a vida até mesmo aos gentios!’” (ver também At 5.31). Quando Pedro e seus companheiros testemunharam a resposta salvífica desses gentios ao Evangelho, a que conclusão chegaram? Que, por livre-arbítrio, os gentios atenderam às condições com base nas quais Deus os elegeria? De maneira alguma!
Pedro viu a resposta dos gentios e só poderia deduzir que Deus lhes dera um dom de arrependimento. O apóstolo não teria precisado chegar a tal conclusão se o arrependimento fosse um dom universal que todos recebem. Ele vê e ouve acerca da fé dos gentios em Cristo, e conclui que Deus lhes concedeu arrependimento. Se a todos, mesmo aqueles que persistem na descrença, fosse concedido o arrependimento, Pedro não poderia e não teria raciocinado como fez.
Assim como ocorreu com Pedro e Paulo, essa doutrina também influenciará radicalmente os motivos pelos quais evangelizamos e os métodos que utilizamos. J. I. Packer explicou como:
Embora sempre precisemos nos lembrar de que é nossa responsabilidade proclamar a salvação, nunca podemos nos esquecer de que é Deus quem salva. É Deus quem atrai homens e mulheres sob o som do Evangelho, e é Deus quem os leva à fé em Cristo. Nosso trabalho de evangelização é o instrumento que Ele usa para esse fim, mas o poder que salva não está no instrumento: está na mão daquele que o usa. Não podemos nos esquecer disso em momento algum. Porque, se nos esquecermos de que é prerrogativa de Deus proporcionar os resultados quando o Evangelho é pregado, começaremos a pensar que é nossa responsabilidade assegurá-los. E se nos esquecermos de que só Deus pode dar a fé, começaremos a pensar que a realização de conversões depende, em última análise, não de Deus, mas de nós, e que o fator decisivo é a maneira pela qual evangelizamos.
Quando começamos a pensar que o pecador tem poder para produzir a fé e o arrependimento, adotamos os métodos e dispositivos maquinados para extrair dele fé e arrependimento. Nós nos tornaríamos pecaminosamente pragmáticos: o que quer que funcione para garantir uma decisão é assim considerado aceitável. Saber do que se trata o Evangelho seria apenas metade da tarefa. Também teríamos de desenvolver uma técnica irresistível para produzir uma resposta. A validade de um método de evangelização seria, portanto, determinada exclusivamente com base no fruto que ele supostamente produziu.
Além disso, continua Packer, se considerarmos a fé e o arrependimento meramente como produto do esforço humano, “deveremos considerar a evangelização como uma atividade que envolve uma batalha de vontades entre nós e aqueles a quem nos dirigimos, uma batalha em que a vitória depende de dispararmos um bombardeio suficientemente pesado com efeitos calculados. Assim, nossa filosofia de evangelização se tornaria assustadoramente semelhante à filosofia da lavagem cerebral”. Mas não é certo, conclui Packer, tomarmos para nós mesmos algo além do que Deus nos comissionou a fazer:
Não é certo nos considerarmos responsáveis por assegurar conversões e fazermos com que nossa iniciativa própria e nossas técnicas realizem o que só Deus pode realizar. Fazer isso é nos intrometermos na função do Espírito Santo e nos exaltarmos como os agentes do novo nascimento. E o que precisamos enxergar é: somente deixando o nosso conhecimento da soberania de Deus controlar a maneira como fazemos nossos planos, oramos e trabalhamos em seu serviço podemos evitar tornar-nos culpados desse erro.
Ao encerrar este capítulo, quero estimulá-lo a não concluir precipitadamente que a evidência presente no Novo Testamento de que a fé e o arrependimento são dons é escassa simplesmente porque discuti apenas cinco passagens — por mais evidentes que elas possam ser. Asseguro-lhe que o Novo Testamento está repleto de textos que afirmam a iniciativa divina na salvação. Examinaremos esses textos em capítulos subsequentes. Aqui, restringi propositalmente nosso estudo a passagens em que a fé e o arrependimento são mencionados explicitamente como dons da graça divina.
Nessa conjuntura, alguém poderia argumentar: “Mas e se Jerry (ou qualquer pessoa eleita) recusasse ou até mesmo utilizasse mal o dom concedido? Só o fato de Deus nos dar fé e arrependimento não garante que os aceitaremos e usaremos, não é mesmo?”
O testemunho de Charles Spurgeon de sua própria conversão ilustra o que tanto me esforcei para explicar:
Certa noite, no meio da semana, sentado na casa de Deus, eu não estava pensando muito sobre o sermão do pregador, porque não acreditei nele. Ocorreu-me então o seguinte pensamento: Como você veio a ser um cristão? Busquei o Senhor. Mas como você veio a buscar o Senhor? A verdade lampejou em minha mente — eu não o teria buscado, a menos que houvesse alguma influência prévia em minha mente para fazer-me buscá-lo. Eu orei, pensei eu, mas então me perguntei: Como vim a orar? Fui induzido a orar pela leitura das Escrituras. Como vim a ler as Escrituras? Li-as, mas o que me levou a fazê-lo? Então, em um momento, vi que Deus estava por trás de tudo aquilo e que Ele era o Autor da minha fé, e então toda a doutrina da graça se descortinou diante de mim, e dessa doutrina não me afastei até hoje, e desejo que essa seja minha confissão constante: “Eu atribuo minha mudança inteiramente a Deus.”
Trecho do livro “Escolhidos: uma exposição da doutrina da eleição”, de Sam Storms, lançado pela Anno Domini em agosto de 2014. O autor faz uma análise profunda da doutrina da eleição, apresentando conceitos históricos e bíblicos. Saiba mais.