Por Sam Storms
O significado deste texto, que talvez seja o versículo mais conhecido da Bíblia, tem frequentemente sido obscurecido por intérpretes que, infelizmente, falharam em situá-lo no contexto maior que as Escrituras como um todo dizem a respeito do amor de Deus.
O que dizer, então, de João 3.16? Como é possível, muitos perguntariam, que Deus ame o mundo inteiro, mas escolha somente alguns para herdar a vida eterna? Será que o amor de Deus pelo “mundo” também deve ser entendido à luz dessa distinção entre a vontade secreta de Deus e sua vontade revelada? Isso é possível, mas não provável, em minha opinião.
Com frequência, a interpretação de João 3.16 começa com o termo mundo, pois se acredita que aqui reside a chave para uma apreciação adequada das dimensões do amor divino. “Apenas pense”, nos dizem, “nas multidões de homens e mulheres que já passaram, passam agora e ainda passarão por toda a face da terra. Deus ama a todos eles, a cada um deles. De fato, Deus os ama tanto que deu o seu Filho unigênito para morrer por cada um deles. Ó, como deve ser grande o amor de Deus para conter em seus braços essas multidões incontáveis de pessoas”.
É isso o que João — ou Jesus, conforme registrado por João — tinha em mente? É inegável que seu propósito é apresentar-nos o incomensurável amor de Deus. Mas, somos capazes de perceber quão imensurável é o amor de Deus medindo o tamanho do mundo? Penso que não. O que é a soma finita da humanidade quando comparada à infinitude de Deus? Seria como medir a força de um ferreiro levando em conta sua habilidade de suportar o peso de uma pena na palma de sua mão! A força primária desse texto está, certamente, em exaltar a qualidade e a majestade infinitas do amor de Deus. Mas tal fim jamais pode ser alcançado pelo cálculo da extensão ou do número de seus objetos. Será que, em qualquer grau, exaltamos o valor da morte de Cristo verificando a quantidade daqueles por quem Ele morreu? É claro que não! Se Ele tivesse morrido por um único pecador, o valor do seu sacrifício não seria menos glorioso do que se Ele tivesse sofrido por dez milhões de mundos!
Em vez disso, façamos uma pausa para considerar o contraste que o apóstolo pretende que vejamos. Certamente, João deseja que reflitamos em nossos corações acerca do caráter incomensurável de tão grande amor, e que o façamos contrastando, face a face, Deus e o mundo. O que isso revela? O que pensamos a respeito de Deus quando pensamos em seu amor pelo mundo? E em que pensamos a respeito do mundo quando ele é visto como o objeto do amor de Deus? O contraste é que Deus é um só e no mundo há muitos? O seu amor é exaltado porque Ele, como um, amou o mundo, composto por muitos? Mais uma vez, certamente não.
Esse amor é infinitamente majestoso porque Deus, sendo santo, amou o mundo pecador! O que nos impressiona é que Deus, que é justo, ama o mundo que é injusto. Esse texto se enraíza em nossos corações porque declara que aquele que habita em luz inacessível se dignou a entrar no reino das trevas; que aquele que é justo se entregou pelos injustos (1 Pe 3.18); que aquele que é totalmente glorioso e desejável sofreu uma vergonha infinita por criaturas detestáveis e repugnantes, que, sem a sua graça, respondem apenas com hostilidade merecedora do inferno! Assim, como disse John Murray:
Aquilo que Deus amou no tocante ao seu caráter é que põe em perspectiva o incomparável e incompreensível amor de Deus. Encontrar qualquer outra coisa como pensamento regente diminuiria a ênfase. Deus amou o que é a antítese de si mesmo; essa é a sua maravilha e grandeza.
Quando lemos o evangelho de João (e suas epístolas), descobrimos que o “mundo” não é visto, fundamentalmente, em termos de eleitos nem em termos de não eleitos, mas como um organismo coletivo: pecador, distante, alienado de Deus, permanecendo sob sua ira e maldição. O mundo é detestável porque é a contradição de tudo que é santo, bom, justo e verdadeiro. O mundo, então, é o contrário de Deus. Ele é sinônimo de tudo que é mau e pernicioso. Ele é aquele sistema da humanidade caída visto não em termos de seu tamanho, mas como um reino controlado satanicamente e hostil ao Reino de Cristo. A qualidade daquilo que Deus amou, não a sua quantidade, é que lança uma luz tão gloriosa sobre esse atributo divino. Em resumo, não posso fazer melhor do que mencionar a explicação de B. B. Warfield:
A maravilha… que o texto nos apresenta é apenas aquela maravilha acima de todas as outras maravilhas deste nosso mundo maravilhoso — a maravilha do amor de Deus pelos pecadores. E essa é a medida pela qual somos convidados a medir a grandeza do amor de Deus. Não é que ele seja tão grande que é capaz de estender-se por todo um grande mundo: ele é tão grande que é capaz de prevalecer sobre o ódio e a aversão ao pecado do Deus Santo. Nisto está o amor, em Deus poder amar o mundo — o mundo que jaz no maligno. Esse Deus que é totalmente santo, justo e bom amou tanto este mundo que deu a ele o seu Filho unigênito, para que Ele pudesse não julgá-lo, mas salvá.
A definição de Warfield do termo mundo precisa ser examinada cuidadosamente:
Ele é, aqui, um termo não tanto de extensão quanto de intensidade. Sua conotação primária é ética, e o objetivo do seu emprego não é sugerir que o mundo é tão grande que é necessária uma grande quantidade de amor para abraçá-lo totalmente, mas que o mundo é tão mau que é necessário um tipo de amor grandioso para sequer amá-lo, e muito mais para amá-lo como Deus o amou quando lhe deu o seu filho. Todo o debate acerca de o amor aqui celebrado ser dado a todo e qualquer homem que está no mundo ou estar restrito somente aos eleitos que foram escolhidos no mundo, está, assim, fora do escopo imediato da passagem e não fornece qualquer chave para a sua interpretação. A passagem não foi concebida para ensinar — e, certamente, não ensina — que Deus ama todos os homens igualmente e visita a todos de modo semelhante, manifestando igualmente Seu amor; tampouco foi concebida para ensinar, ou ensina, que seu amor está confinado a alguns poucos indivíduos especialmente eleitos, selecionados no mundo. Ela foi concebida para despertar em nossos corações uma percepção da maravilha e do mistério do amor de Deus por um mundo pecaminoso — concebido, aqui, não quantitativa, mas qualitativamente, tendo em vista sua característica distintiva: ser pecaminoso.
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