Lei vs. Graça: Os Dez Mandamentos e a Graça de Deus
Por Solano Portela
A conversão e o ensinamento de Paulo
Sl 119.4 – “Tu ordenaste os teus mandamentos, para que os cumpramos à risca”.
Os Dez Mandamentos representam a forma objetiva de Deus indicar o que espera de cada um de nós. Deus não nos deu uma religião subjetiva, cujas doutrinas dependem da cabeça de cada um, mas ele nos escreveu objetivamente a sua palavra. Nessa palavra, na Bíblia, ele nos revelou a sua Lei Moral – sua vontade eterna às suas criaturas, refletindo a sua majestade e santidade.
Nos Dez Mandamentos conhecemos nossos limites e nossas obrigações. Comparando nossa vida, nossos desejos e inclinações com a Lei Santa de Deus, compreendemos a extensão de nossa pecaminosidade e verificamos que a salvação procede só de Jesus, pelo seu sacrifício supremo na cruz do Calvário.
Já vimos como Jesus resumiu os Dez Mandamentos em amar a Deus e ao próximo. Muitos têm procurado dissociar essa afirmação de Jesus do caráter objetivo dos Dez Mandamentos. Afinal, dizem esses, Jesus está falando simplesmente de amor, um sentimento subjetivo, e não do simples cumprimento objetivo da lei. Um autor inglês, Joseph Fletcher, desenvolveu toda uma visão ética construída em cima do que poderíamos chamar de “casuísmo cristão” (tomou o nome de ética situacionista). Fletcher defendeu que não existem regras absolutas mas o comportamento certo ou errado depende da situação. Em sua filosofia, o único ponto de aferição a ser seguido é – “aja de forma a demonstrar o máximo de amor possível”. Essas palavras, que parecem boas e cristãs, são extremamente perigosas, pois cada um passa a ser juiz de suas próprias ações e sempre poderá racionalizar comportamentos pecaminosos apelando para uma ou outra suposta forma de amor demonstrado, nem que seja o amor por si próprio.
Contrariando essa filosofia, o conceito bíblico de amor se expressa em obediência e abnegação. Essa obediência não é a uma lei intangível, indescritível, ou subjetiva, dependente da interpretação individual de cada um, mas à lei objetiva de Deus. É o próprio Jesus que esclarece e determina, em João 14.21: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama…”
Neste capítulo, vamos estudar o que aconteceu com Paulo e qual o seu ensinamento, conforme os relatos do livro de Atos (8.1-3 e 9.1-22) e pelos seus pronunciamentos, no livro de Romanos (capítulos 3 e 7).
A visão de Paulo, antes da sua conversão
Do seu próprio ponto de vista, Paulo, antes de sua conversão (na ocasião ainda chamado Saulo), acreditava que estava zelando pela lei de Deus, perseguindo os cristãos. Sua visão da lei era uma visão distorcida, fruto de uma religião equivocada. Sem ter sido ainda tocado pelo Espírito Santo de Deus ele estava cego, espiritualmente.
Atos 7.54-8.1 relata esse tempo conturbado da vida daquele que viria ser o apóstolo dos gentios e o grande expositor bíblico. Sua visão anti-cristã o levou a cometer muitos crimes. Ele participou do apedrejamento de Estevão e foi um ativo perseguidor de muitos cristãos, como lemos em Atos 8.3 e 9.1-2.
A compreensão da lei de Deus de todos aqueles que estão sob o domínio de Satanás, envolvidos com falsas práticas religiosas, é uma visão distorcida. Ela serve de desculpas para as práticas mais absurdas, amorais e cruéis. O próprio Paulo escreveu, sobre as pessoas sem Deus, em Romanos 1.22 “…inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos”. Ele tinha convicção disso na sua própria pele, havia experimentado quão Satanás é enganador e usurpador da lógica espiritual. Convicto de exercitar zelo, havia perseguido inocentes, mulheres, crianças – aqueles devotados à adoração verdadeira, ao culto ao Deus soberano. Somente a graça, o amor e a misericórdia de Deus poderia cobrir essa multidão de pecados e apagar a amargura profunda dessa lembrança. E assim ocorreu (Fl 3.13).
A falta de visão de Paulo, durante a sua conversão
Deus arrancou Paulo do pecado através da experiência relatada no livro de Atos (9.3-19), a qual bem conhecemos. Durante três dias ele, que havia sido cego, espiritualmente, foi acometido de cegueira física – talvez simbolizando o seu estado espiritual. Nesse período ele teve bastante oportunidade para meditar. Foi, posteriormente, orientado por Ananias.
Mas Deus transformou Saulo em Paulo. De um perseguidor, ele tornou-se o grande apóstolo, propagador e defensor do Evangelho. Podemos imaginar a confusão em sua cabeça: todas as suas convicções estavam sendo subvertidas. Todas as suas premissas estavam sendo demonstradas falsas. Todos os seus objetivos de vida estavam sendo modificados.
O texto bíblico nos diz que o Senhor enviou Ananias para que Paulo recuperasse a vista e ficasse cheio do Espírito Santo (9.17). Era o Espírito Santo, agora, que, além de recuperar a visão de Paulo, iria coordenar todo o conhecimento que ele havia absorvido ao longo das prioridades verdadeiras da vida. Era o Espírito Santo que o iria instruir, possivelmente utilizando os “dias com os discípulos” (9.19), nos detalhes da fé verdadeira que agora abraçava. Era o Espírito Santo que o iria inspirar a escrever suas cartas, nas quais somos instruídos sobre a compreensão correta da lei de Deus.
A nova visão de Paulo, depois de sua conversão
Se estudássemos apenas o registro histórico da conversão de Paulo, não chegaríamos a compreender a importância da Lei de Deus, nesse processo e durante toda a sua vida. Entretanto, quando lemos o que Paulo escreveu posteriormente, passamos a compreender muito sobre qual era a visão paulina a respeito da Lei, visão essa que enfatiza a validade da lei moral de Deus a todas as eras.
Por exemplo, em Romanos 3.20, lemos “… ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado”. A primeira validade da lei é fornecer o “pleno conhecimento do pecado”, condição necessária ao arrependimento verdadeiro. Em Romanos 7.7, Paulo reforça a validade da Lei para nos levar à uma conscientização plena do pecado e de nossa dependência da misericórdia do Deus Criador: “que diremos, pois? A lei é pecado? De modo nenhum. Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás”.
Além da validade revelativa, sobre a nossa natureza pecaminosa e sobre a santidade de Deus, Paulo ensina que a lei não é anulada pela fé. A lei moral de Deus providenciava o rumo à vida de Paulo, e assim deve ser para nós. Em Romanos 3.31 ele antecipa as indagações de seus leitores e faz a pergunta retórica: “Anulamos, pois, a lei pela fé?”; respondendo a seguir com uma negativa enfática: “Não, de maneira nenhuma, antes confirmamos a lei”. Os preceitos eternos de Deus, a sua lei moral, reflexo de sua santidade e infinita retidão, continua sendo a nossa bússola, a forma objetiva e explícita de relacionar os nossos deveres para com Deus e para com o nosso próximo.
Não é de admirar que Paulo chegue a uma conclusão que difere bastante da falta de apreciação da lei de Deus que encontramos na teologia de tantos movimentos contemporâneos. Em Romanos 7.12 ele fecha o que vem expondo e desenvolvendo desde o capítulo 3: “Por conseguinte; a lei é santa; e o mandamento, santo e justo e bom”.
Não é descartando a validade da lei moral que vamos nos aproximar mais de Deus. Não é substituindo a objetividade da lei por um subjetivismo nocivo e aleatório, supostamente fundamentado em um grau maior de espiritualidade, que vamos agradar a Deus. Estaremos compreendendo a visão que Paulo, inspirado pelo Espírito Santo, quer transmitir, quando começarmos a enxergar os problemas em nós próprios e não na santa lei de Deus. Assim poderemos exclamar, como ele, em Romanos 7.14: “Porque bem sabemos que a lei é espiritual; eu, todavia, sou carnal, vendido à escravidão do pecado…”
A Lei de Deus Hoje – Afinal, estamos sob a lei, ou sob a graça de Deus?
Muitas interpretações erradas podem surgir de um falho entendimento das declarações bíblicas sobre esta questão. Com efeito, Paulo ensina que “não estamos sob a lei mas sob a graça” (Romanos 6:14). Mas o que quer dizer “não estar sob a lei de Deus?” Perdeu ela a sua validade? É apenas um registro histórico? Estamos em uma situação de total desobrigação para com ela? Vamos apenas subjetivamente, “amar”, sem direcionamento ou ações concretas que comprovem este amor?
Devemos relembrar os múltiplos aspectos da “lei de Deus”, conforme já estudamos no capítulo anterior: Lei Civil ou Judicial, Lei Religiosa ou Cerimonial e Lei Moral. Se considerarmos que os três aspectos apresentados da lei de Deus são distinções bíblicas, podemos afirmar:
” Não estamos sob a Lei Civil de Israel, mas sob o período da Graça de Deus, em que o evangelho atinge todos os povos, raças tribos e nações.
” Não estamos sob a Lei Religiosa de Israel, que apontava para o Messias, foi cumprida em Cristo, e não nos prende sob nenhuma de suas ordenanças cerimoniais, uma vez que estamos sob a graça do evangelho de Cristo, com acesso direto ao trono, pelo seu Santo Espírito, sem a intermediação dos sacerdotes.
” Não estamos sob a condenação da Lei Moral de Deus, se fomos resgatados pelo seu sangue, e nos acharmos cobertos por sua graça.
” Não estamos, portanto, sob a lei, mas sob a graça de Deus, nestes sentidos.
Entretanto …
” Estamos sob a Lei Moral de Deus, no sentido de que ela continua representando a soma de nossos deveres e obrigações para com Deus e para com o nosso semelhante.
” Estamos sob a Lei Moral de Deus, no sentido de que ela, resumida nos Dez Mandamentos, representa a trilha traçada por Deus no processo de santificação, efetivado pelo Espírito Santo em nossas pessoas (João 14:15). Nos dois últimos aspectos, a própria Lei Moral de Deus é uma expressão de sua Graça, representando a objetiva e proposicional revelação de Sua vontade.
É verdade, portanto, que, nos sentidos acima, não estamos sob a lei, mas sob a graça de Deus. Devemos cuidar, entretanto, para nunca entender essa expressão como algo que invalida a lei de Deus aos nossos dias. Mais importante, ainda, devemos cuidar para não transmitir conceitos falsos e não bíblicos, estabelecendo um contraste inverídico entre a lei e a graça, como se ambos não procedessem de Deus.
Teologicamente, chamamos de antinomianismo, a filosofia que expressa total independência das pessoas para com a lei de Deus; que declara a invalidade dela para os nossos dias. Muitos ensinamentos no campo evangélico são, na prática e em essência, antinômios e totalmente subjetivos – ou seja, desprezam a lei de Deus, negam a sua validade e colocam a interpretação subjetiva de cada um acima das determinações objetivas reveladas por Deus, na Bíblia. Quando os reformadores defenderam a expressão Sola Scriptura – somente as escrituras – estavam reafirmando exatamente isso, que devemos sempre nos prender à objetiva revelação de Deus em sua palavra, e não nas especulações ou tradições dos homens.
Quando examinamos a lei de Deus sob esses aspectos, muitas perguntas são pertinentes e devem ser individualmente respondidas. Será que temos a percepção correta de nossas obrigações para com Deus e para com o nosso próximo? Será que prezamos adequadamente a lei de Deus? Será que estamos utilizando o fato de estarmos “sob a graça” como desculpa para desprezarmos a lei de Deus? Será que a nossa compreensão é aquela abrigada pelos padrões confessionais, como nas perguntas do Catecismo Maior, que temos estudado?
O que diz o Catecismo Maior de Westminster (pergunta 99)?
P. 99. Que regras devem ser observadas para a boa compreensão dos dez mandamentos?
R. Para a boa compreensão dos dez mandamentos as seguintes regras devem ser observadas:1a. Que a lei é perfeita e obriga a todos à plena conformidade do homem inteiro à retidão dela e à inteira obediência para sempre; de modo que requer a sua perfeição em todos os deveres e proíbe o mínimo grau de todo o pecado.
Ref.: Sl 19.7, Tg 2.10; Mt 5.21,222a. Que a lei é espiritual, e assim se estende tanto ao entendimento, à vontade, aos afetos e a todas as outras potências da alma – como às palavras, às obras e ao procedimento.
Ref.: Rm 7.14; Dt 6.5; Mt 22.37-39 e 12.36,37.3a. Que uma e a mesma coisa, em respeitos diversos, é exigida ou proibida em diversos mandamentos.
Ref.: Cl 3.5; 1Tm 6.10; Pv 1.19; Am 8.54a. Que onde um dever é prescrito, o pecado contrário é proibido; e onde um pecado é proibido, o dever contrário é prescrito; assim como onde uma Promessa está anexa, a ameaça contrária está inclusa; e onde uma ameaça está anexa a promessa contrária está inclusa.
Ref.: Is 58.13; Mt 15.4-6; Ef 4.28; Ex 20.12; Pv 30.17; Jr 18.7-8; Êx 20.75a. Que o que Deus proíbe não se há de fazer em tempo algum, e o que ele manda é sempre um dever; mas nem todo o dever especial é para se cumprir em todos os tempos.
Ref.: Rm 3.8; Dt 4.9; Mt 12.76a. Que, sob um pecado ou um dever, todos os da mesma classe são proibidos ou mandados, juntamente com todas as coisas, meios, ocasiões e aparências deles e provocações a eles.
Ref.: Hb 10.24,25; 2Ts 5.22; Gl 5.26; Cl 3.21; Jd 237a. Que aquilo que nos é proibido ou mandado temos a obrigação, segundo o lugar que ocupamos, de procurar que seja evitado ou cumprido por outros segundo o dever das suas posições.
Ref.: Êx 20.10; Lv 19.17; Gn 18.19; Dt 6.6,7; Js 24.158a. Que, quanto ao que é mandado a outros, somos obrigados, segundo a nossa posição e vocação, a ajudá-los, e a cuidar em não participar com outros do que lhe é proibido.
Ref.: 2Co 1.24; 1Tm 5.22; Ef 5.11
Fonte: [ Site do autor ]