Estou no ministério faz 31 anos. Neste tempo, já enfrentei muitas situações para as quais o seminário nunca me preparou. Jamais me canso de ficar espantado com a capacidade que pessoas têm para complicar as suas vidas. O ser humano realmente é muito complicado e, se for possível, acaba estragando boa parte da sua vida, com uma facilidade estarrecedora.
Em todas as situações o Pastor não tem saída senão falar a verdade dura. Pois não há como atenuar a verdade em prol de uma resposta mais “humana”. “Tenha dó”, alguns dizem, num apelo para não trazer à baila as claras declarações das Escrituras. Já ouvi inúmeras vezes respostas como as dos discípulos após Jesus falar de casamento e divórcio: “Então melhor seria nem casar!” (Mt 19.10). A luz da Bíblia não é um abajur suave que cria um ambiente, mas um farol que ilumina, revela, denuncia. A Bíblia é uma espada, não um abanador. Fazer o quê? A verdade tem que ser dita e crida.
Mas há situações que já enfrentei em que não há uma resposta clara e evidente nas Escrituras. Uma delas é o problema de crianças recém-nascidas que vêm a falecer. Nasceu morta, ou logo após parte desta vida, e então perguntam: “Para onde foi o meu filho, ou a minha filha, Bispo?” Uma mãe em prantos não se contenta com um apelo aos mistérios da fé. Nem seria um ato responsável simplesmente dar uma meia-resposta. Por isso, me pus a estudar as Sagradas Letras, assim como os grandes intérpretes do passado, para ter uma resposta biblicamente plausível.
Entenda, por favor, que esta não é uma questão marginal, nem esotérica. Nos tempos medievais, os teólogos discutiam quantos anjos cabiam na ponta de uma agulha. Algumas questões tratadas na teologia têm essa mesma importância (ou, melhor, falta de importância). Mas o que acontece com um neném que morre nos leva ao cerne de verdades como pecado original, culpa, redenção, Céu e Inferno. Resolver isso não é pouca coisa não. Então sigamos em frente, pois quero lhe explicar o que hoje creio ser o destino eterno de um desses pequeninos ceifados antes mesmo de conseguirem dar seu primeiro passo, falar a sua primeira palavra ou ter sequer noção do mundo pelos seus olhos.
Nascemos pecadores? Sim. Em Adão, todos nós “pecamos” e, por isso, todos nós somos pecadores desde o berço. Mas temos que entender que a Bíblia diferencia entre o princípio formal e o princípio material do pecado, assim como a própria lei diferencia entre os dois. O princípio formal é a Lei. O princípio material é o ato que traz a Lei a ser executada. Dizer que todo assassino será punido é um princípio formal. Se aplica a todos. Dizer que alguém assassinou é o princípio material, isto é, há evidência que exige um veredito e, consequentemente, punição.
Paulo usou o termo hamartia (pecado) que não descreve um pecado, mas o pecado. É o poder que nos escraviza, nos enreda, nos leva a agir e consequentemente morrer. Nascemos nessa condição escrava. Pelágio, que foi condenado como herege, afirmou que todos nós nascemos com a conta limpa, por assim dizer. Somos uma tábula rasa, para usar o termo que o filósofo grego Aristóteles cunhou e se consagrou pelas ideias do empirista inglês John Locke. O fato de pecarmos é o que nos condena. Na visão de Pelágio, o homem não nasce morto, mas livre para tomar a sua própria decisão entre a vida e a morte. Por outro lado, o apóstolo Paulo afirmou que nascemos mortos. Um morto não tem capacidade de escolher a vida, a não ser que Deus lhe dê esta capacidade. Por isso mesmo Jesus falou para Nicodemos que, sem que nasçamos de novo, não podemos, sequer, ver o Reino de Deus. Hamartia é o poder sob o qual nós nascemos e do qual não há escape, a não ser pelo poder da Cruz.
Calvino chegou a dizer, com todas as letras, que nascemos culpados pelo pecado de Adão. Literalmente somos parceiros no seu pecado, sem que tenhamos agido por vontade própria. Mas a própria natureza de punição compreende um ato da vontade. Punição sempre se aplica a um ato. O próprio juízo de Deus será aplicado aos pecados que cometemos e os que praticam as obras da carne não herdarão o Reino de Deus (Gl 5.17-21). Mas uma criança no colo da mãe ainda não agiu. Sua existência é de absoluta dependência, sem que tenha tomado uma atitude ou praticado um ato de desobediência.
Os arminianos afirmam que todos nascem na inocência até que a criança volte ao estado de pecado, em virtude da obra da Cruz. Afirmam que Cristo fez todos inocentes, pelo poder da Cruz, mas que todos acabam pecando mesmo. Isso também nega o que Paulo afirma tão claramente sobre todos nós termos nascido no pecado. Em nenhum lugar há esta sugestão de que nascemos “limpos”. Mas será que nascer sem pecado é o mesmo que nascer sem a condenação por termos pecado? Será que temos de negar a questão de pecado original para afirmar que uma criança não seja condenada sem nunca ter realmente pecado?
Não acho uma solução em Calvino, nem tampouco em Pelágio ou Armínio. Volto a recorrer à diferença entre o princípio formal e o material da lei. Todos que pecam são condenados. Todos nós nascemos sob este poder. Todos pecam porque são pecadores. Mas o teólogo reformado Abraão Kuyper disse: “Pecado e culpa andam juntos, mas os dois não podem ser confundidos nem considerados sinônimos…”. Se não representam a mesma coisa, então posso crer que não somos condenados por sermos pecadores e sim porque pecamos. Será que a Bíblia diz isso? Sim.
Em Tiago achamos a seguinte passagem: Quando alguém for tentado, jamais deverá dizer: “Estou sendo tentado por Deus”. Pois Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta. Cada um, porém, é tentado pela própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido. Então a cobiça, tendo engravidado, dá à luz o pecado; e o pecado, após ter-se consumado, gera a morte. (Tg 1.13-15 grifos meus)
Então é o pecado consumado que gera a morte. Sem que a tentação seja consumada, ainda podemos concluir que não há materialidade suficiente para a aplicação do princípio formal – isto é, que todo que peca será condenado e morrerá eternamente.
Certamente, todo o que viver viverá para pecar e, pelo seu pecado, será condenado. Mas ao que não tiver como pecar, segue-se a aplicação do princípio formal, novamente, só que no seu sentido inverso. Se pelo pecar somos condenados, há como afirmar que sem pecar não há como condenar. Se não houver como condenar, então não há base para a sua perdição eterna.
Após criar dois garotos, que hoje são homens feitos, posso lhe dizer que o pecado se revela cedo na vida. Não demora e a criança se mostrar um “pecador”, um rebelde, um desobediente por natureza. Nunca é necessário ensinar uma criança a fazer travessura. Toda e qualquer educação de uma criança é necessariamente uma instrução na justiça acompanhada por limites, instruções e correções amorosas, mesmo que sejam firmes.
Não creio que Deus mande crianças, mortas nos seus primeiros dias de vida ou mesmo no ventre, para o Inferno. Nem creio que ele as poupe por misericórdia. Creio que a própria justiça de Deus não as condena, pois ainda não pecaram. São, por natureza, infratores da Lei divina, sem que tenham transgredido a Lei. Dado o suficiente tempo, elas certamente teriam razão para condenação. Mas, até agirem, não.
Ficam no limbo? Não creio nisso, até porque a própria Igreja Católica, que inicialmente havia criado essa ideia, já a aboliu. Purgatório? Não creio nisso tampouco. Vão para uma recompensa eterna? Bom, não tiveram a aplicação da graça às suas vidas com o arrependimento que a acompanha, seguida por uma vida de perseverança na fé. O que resta? Bom, uma coisa eu creio – não é o Inferno. Disso eu tenho convicção. Deus é misericordioso, certamente. Mas Deus é justo, também. Um dia saberemos por certo. E sei que será um dia de paz e alegria para todos nós. Louvaremos a Deus pela sua sabedoria e perfeita vontade.
Peço desculpas pelo tratamento tão sumário de um argumento muito mais complexo. Mas deixo a minha conclusão. Que Deus nos dê graça, consolo e um temor santo ao ponderarmos questões de tanto peso.
Na paz,
+W