Por Sam Storms
O que dizer então da liberdade humana? Para responder a essa pergunta, precisamos fazer distinção entre “liberdade de ação” e “livre-arbítrio”. Dizer apenas, sem qualquer qualificação, que “o homem é livre” ou que “o homem não é livre” é fazer uma afirmação simplista e enganosa. Mas dizer que o homem tem liberdade de ação é dizer que ele é livre para fazer o que quer. Se ele quiser rejeitar a Cristo, ele pode. Se ele quiser aceitar a Cristo, ele pode. Em resumo, a vontade humana é livre para escolher o que quer que o coração deseje. Entretanto, sem a interposição da graça divina, ninguém quer ou deseja ter Cristo em seu pensamento ou em sua vida.
Todas as pessoas rejeitam o Evangelho de modo livre, voluntário e espontâneo, porque é o desejo dos seus corações fazê-lo. A liberdade de uma pessoa consiste na capacidade de agir em conformidade com os seus desejos e inclinações, sem que ela se sinta compelida a agir de outro modo por causa de pessoas ou fatores que não são inerentes a ela. Desde que sua escolha seja fruto voluntário do seu próprio desejo, a vontade é livre. Isso é o que tenho em mente quando digo: “Sim, todas as pessoas são agentes morais livres.”
Por outro lado, dizer que uma pessoa tem livre-arbítrio é dizer que ela tem essa mesma capacidade ou poder para aceitar ou rejeitar o Evangelho. É dizer que ela é tão capaz de crer quanto de descrer, e que essa capacidade brota dela mesma e nasce nela — ou é o resultado da graça preveniente — não obstante o seu estado caído e pecaminoso. Se é isso que você tem em mente quando me pergunta: “O homem é livre?”, minha resposta, ou melhor, a resposta da Bíblia, é “não”. A vontade de uma pessoa é a extensão e expressão invariável da sua natureza. Assim como ela é, ela deseja. A liberdade que uma pessoa tem para agir, desejar ou escolher de modo contrário à sua natureza não é maior do que a liberdade que uma macieira tem para produzir avelãs.
Mas não é fato que Deus dá a cada um de nós a oportunidade de crer? Não é verdade que Ele nos confronta com o Evangelho e diz: “Creia para que você possa ter vida”? Sim, Ele o faz. Mas a humanidade sempre, invariável, inevitável e incessantemente, e também prontamente e de maneira voluntária diz “não”. Note bem. Não estou dizendo que, quando confrontada com o Evangelho, uma pessoa não posse exercer a sua vontade. Todos nós temos uma vontade e todos somos capazes de exercê-la na tomada de decisões. O que estou dizendo é que, quando confrontados com o Evangelho, não conseguimos desejar corretamente. Não somos impedidos de crer indo contra as nossas vontades. “Quem vier a mim”, declara Jesus, “eu jamais rejeitarei” (Jo 6.37). O problema, porém, como Jesus diz em seguida, é que “ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair” (Jo 6.44; grifo do autor).
Por que ninguém pode vir a Jesus a menos que o Pai o atraia? Será porque o Pai o impede de fazê-lo? Será porque o Pai ou o Filho ou o Espírito colocou um obstáculo ou uma barreira em seu caminho para impedi-lo de ir quando alguém deseja urgentemente fazê-lo? Deus nos livre! Também não é porque a pessoa não tem as faculdades volitivas e intelectuais necessárias para fazer uma escolha positiva. Tampouco é por causa de algum defeito físico que ela repudia o Evangelho.
A razão pela qual ninguém pode ir a Jesus é que ir até Ele não está em nossa natureza. Nossa natureza e, portanto, nossa vontade, é fugir de Cristo, não ir até Ele. O fato — e um fato triste — é que não queremos ir. Nossa satisfação está em não irmos. Escolhemos permanecer em nosso pecado e incredulidade por nosso próprio desejo, liberdade e vontade, porque nada encontramos em Jesus que seja sedutor, atraente, verdadeiro ou represente de algum modo uma melhoria daquilo que já somos e temos por esforço próprio. Se um dia chegássemos ao ponto de querer ir a Cristo para obter vida, poderíamos fazê-lo. De fato, Jesus diz que, com toda a certeza, o faremos (Jo 6.37)! Mas esse “querer”, esse “ir”, não vem de nós mesmos, mas de Deus. Isso vem do Pai, que na eternidade passada nos “deu” ao Filho e, no tempo presente, nos “leva” à fé. Dizendo de maneira simples, ninguém, por si mesmo, quer ser salvo. Mas quem quer que, por intermédio do poder de Deus, se disponha a ser salvo, o será!
Alguns pensam erroneamente que isso significa simplesmente que nenhuma pessoa é capaz de salvar a si mesma. De fato, todos os cristãos, tanto os calvinistas quanto os arminianos, acreditam nisso. Mas certamente alguém dirá que, se Cristo se oferecer para salvar uma pessoa, ela pode pelo menos valer-se dessa redenção prometida. Embora não possa salvar a si mesma, ela não pode, pelo menos, pedir a Cristo para fazer isso por ela? Embora esteja espiritualmente doente por causa do pecado, ela não pode, pelo menos, estender a mão e tomar o medicamento oferecido por Jesus, o Grande Médico? Afinal de contas, ninguém pode salvar a si mesmo, mas com certeza é capaz de preparar-se para receber o perdão que Cristo lhe oferece. Não é? O arminiano admitirá que o homem está em um estado lamentável, de fato terrivelmente enfermo, mas não está morto. Enquanto há uma centelha de vida espiritual nele, enquanto ele pode pensar, sentir e desejar, ele é capaz de estender a mão e tomar o remédio de cura que Deus lhe oferece por intermédio de Cristo.
O que há de errado com essa linha de raciocínio? Ela está errada porque a Bíblia não retrata as pessoas como estando meramente doentes ou até mesmo confinadas a cuidados intensivos. Elas estão mortas espiritualmente. São cadáveres religiosos e morais! Sim, as pessoas estão muito vivas física, mental e emocionalmente. Mas estão mortas espiritualmente. Isso não quer dizer que fé e arrependimento são desnecessários. Se uma pessoa for salva, será por meio da fé — caso contrário, não será salva. Mas por ser espiritualmente desprovido de vida (Ef 2.1,2), o pecador precisa ser vivificado pelo poder da graça de Deus antes de ser capaz de se arrepender e crer.
Segundo John Stott, à primeira vista parece estranho o fato de Paulo descrever as pessoas como “mortas” em Efésios 2.1,2, porque
(…) muitas pessoas que não fazem qualquer profissão de fé cristã, que até mesmo repudiam abertamente a Jesus Cristo, parecem estar muito vivas. Uma tem o corpo vigoroso de um atleta; outra, a mente vívida de um estudioso; uma terceira, a personalidade vivaz de uma estrela de cinema. Devemos dizer que tais pessoas estão mortas se Cristo não as tiver salvado? Sim, de fato, devemos dizer exatamente isso. Porque, na esfera que importa acima de tudo — que não é o corpo, nem a mente, nem a personalidade, mas a alma — elas não têm vida. E você pode perceber isso. Elas são cegas para a glória de Jesus Cristo e surdas à voz do Espírito Santo. Elas não têm amor a Deus nem qualquer consciência sensível de sua realidade pessoal; seu espírito não salta em direção a Ele exclamando “Aba, Pai”; elas não têm desejo de comunhão com o povo dele. Elas respondem a Deus da mesma maneira que um cadáver o faz. Assim, não devemos hesitar em afirmar que uma vida sem Deus — não importa o quão preparada em seu físico e alerta em sua mente a pessoa possa ser é uma morte viva; e que aqueles que a vivem estão mortos, mesmo quando vivos.
Parece que os não regenerados estão “mortos” em pelo menos dois sentidos. Por um lado, há uma insensibilidade às coisas de Deus. “As belezas da santidade não atraem o homem em sua insensibilidade espiritual, nem as misérias do inferno o detêm. O amor de Deus, os sofrimentos de Cristo, as súplicas fervorosas por tudo o que é terno e por tudo o que é terrível não os afetam.” Por outro, há também uma incapacidade. “O cadáver não pode se levantar do túmulo e voltar à cena e à sociedade do mundo vivo. Somente o estrépito da última trombeta pode fazê-lo saltar de seu sono escuro e sem sonhos.” Talvez a melhor maneira de transmitir corretamente esse argumento seja uma ilustração. Ela vem da pena do grande evangelista britânico do século dezoito, George Whitefield:
Venham, vocês, mortos sem Cristo, pecadores não convertidos, venham e vejam o lugar onde eles colocaram o corpo do falecido Lázaro. Vejam-no arrumado, mãos e pés atados com mortalhas, trancado e fedorento em uma caverna escura, com uma grande pedra colocada no topo. Vejam-no repetidas vezes, aproximem-se dele sem temer, sintam o cheiro dele. Ah! Como ele fede. Parem lá agora, façam uma pausa e, enquanto contemplam o cadáver de Lázaro, permitam-me dizer-lhes com grande clareza, mas com um amor ainda maior, que essa carcaça morta, amarrada, sepultada e fedorenta não passa de uma representação fiel das suas pobres almas em seu estado natural; pois, quer creiam, quer não, o espírito que está contido em vocês, sepultado em carne e osso, está tão literalmente morto para Deus e tão factualmente morto em delitos e pecados, quanto o corpo de Lázaro estava na gruta. Ele teve seus pés e suas mãos amarrados com mortalhas? Assim estão vocês de mãos e pés atados com suas corrupções. E assim como uma pedra foi colocada no sepulcro, há uma pedra de incredulidade sobre os seus corações estúpidos. Talvez vocês tenham ficado nesse estado não apenas quatro dias, mas muitos anos, fedendo às narinas de Deus. E o que é ainda mais comovente, vocês são tão incapazes de levantar-se desse estado morto repugnante para uma vida de verdadeira justiça e santidade quanto Lázaro foi de levantar-se da caverna em que permanecera durante tanto tempo. Vocês podem experimentar o poder de seu próprio livre-arbítrio tão alardeado, bem como a força e a energia da persuasão moral e dos argumentos racionais (que, sem qualquer dúvida, encontram lugar na religião), mas todos os seus esforços — nunca exercidos com tanto vigor — se revelarão muito infrutíferos e sem sucesso até que o mesmo Jesus que disse “Tirem a pedra” e gritou “Lázaro, venha para fora” também desperte vocês.