Na famosa peça de William Shakespeare, Julieta diz o seguinte: “O que há num nome? Aquela que chamamos de rosa com qualquer outro nome teria igual perfume.” – [“Romeu e Julieta” (II, ii, 1-2)]. Quase 400 anos depois, o autor e filósofo italiano Umberto Eco escreveria a obra “O Nome da Rosa”, posteriormente transformada em longa-metragem. O título se refere a uma jovem que passa pela vida de um noviço, aspirante a frade franciscano, em meio a uma trama tensa e dramática. O nome dela o rapaz jamais viria a conhecer. A mensagem da peça e a do livro é a mesma: o nome não importa. Tanto o amor de Julieta quanto o amor do noviço pela moça não se estribaram no nome. Simplesmente existiam por si mesmos. Romeu vinha de um clã inimigo, mas Julieta não via o nome da sua família como obstáculo. A jovem do livro “O Nome da Rosa” marcou a vida do aspirante a frade, embora ele nunca tenha chegado a saber o seu nome.
Vivemos num mundo complexo. É um mundo enormemente marcado por inúmeros estímulos: propaganda, ideias, credos, opiniões, e, diferentemente dos nossos antepassados, com acesso a muito mais do que temos condições de processar. Convenhamos que, por causa das comunicações modernas, temos contato com notícias e conceitos que antigamente só estariam ao alcance de quem estivesse por perto. A famosa “boca miúda” (informação extraoficial, boato, fofoca) corria os vilarejos de tempos passados. O padeiro que matou um cachorro, o novo padre que chegou à localidade, o desentendimento entre o chefe de polícia e o dono da mercearia, o anarquista que se mudou para a vila e todos suspeitam ser alguém com um passado escuso. Essas eram as notícias de antigamente.
Ideias mudavam lentamente. As gerações se sucediam e havia uma continuidade de profissões e seus grêmios, que admitiam os filhos dos membros e os filhos dos filhos, perpetuavam-se tradições e, assim, a sociedade ganhava estabilidade. Claro que missionários evangélicos chegavam à cidade, colportores de bíblias que eram escorraçados a mando do padre e os protestantes eram rotulados de “bodes” (corruptela preconceituosa de “frei-bode”, por insinuar que seus hinos seriam balidos e não cânticos). Eram os traidores da “igreja mãe”. Mas todo mundo tinha um nome. Todos tinham endereço. Todos sabiam que José era filho de Matilde e Juvêncio e que seu tio estava num hospício porque fez algo inimaginável e acabou perdendo o juízo. Todos sabiam que Dona Creme fazia os pasteis mais saborosos do mundo. Todo mundo sabia que João e Maria se casariam e que tinham sido prometidos desde a mais tenra idade pelos seus pais. Sabiam que João roubou maçãs do vizinho quando tinha apenas 11 anos. Sabiam que Maria ganhou o concurso de poesia no terceiro ano do Primário (o que hoje seria o Ensino Fundamental). Todos sabiam. Todos tinham um nome e uma história e eram conhecidos.
Mas o mundo mudou. Mal sabemos o nome dos nossos vizinhos mais próximos. Pelos meios de comunicação vemos notícias, desastres, celebridades, eventos esportivos – a distâncias antes inimagináveis. Uma onda gigante destrói uma usina nuclear do outro lado do planeta. Sem sequer ter noção do que isso significa já somos cobrados. Sim, cobrados. Todos querem saber “como pode isso?”. “O que Deus tem a ver com isso?”. Temos uma visão super-humana do mundo sem sermos super-humanos. Somos meros mortais, limitados a entender o que está mais próximo. Por isso, somos forçados a generalizar, a dar nomes a coisas que não compreendemos, a pensar em categorias e arquétipos. Isso faz com que criemos noções gerais e preconceituosas sobre os outros. “Ah, ele é carioca…”, como se isso explicasse tudo a seu respeito. “Fulano é presbiteriano, você sabe como é…”, como se todos fossem iguais. “Eles são pentecostais, cuidado com eles…”. Seguimos a cartilha de rotular, o que é uma maneira de nos mantermos distantes para que não tenhamos de nos dar ao trabalho. Também é uma maneira de simplificar para não enlouquecer.
Alguns de meus textos e vídeos recentes têm sido compartilhados por muitos, em contextos diversos. O que um internauta comentou me causou espécie (se bem que já tinha lido isso em outros lugares). Ele disse que se surpreendeu pelas minhas posturas, uma vez que “partiam de um neopentecostal”. Protesto. Continuo a protestar. Mas a verdade é que, embora nossa denominação, a Igreja Cristã Nova Vida, tenha uma origem pentecostal tradicional, muitos nos associam ao movimento neopentecostal. Cheguei a escrever um livro em que explico como testemunha ocular as verdadeiras origens do neopentecostalismo e sua relação conosco (“Neopentecostalismo: A História Não Contada”, da www.editoraannodomini.com.br). Mas há muitos que ainda não o leram, talvez jamais o lerão e por isso usam rótulos pré-concebidos.
Já estou no ministério há 31 anos. Minha família está no ministério há mais de 120. Meu pai foi missionário, evangelista, pastor e bispo. Meu avô foi pioneiro de igrejas e chegou a ser Superintendente Nacional das Assembleias de Deus do Canadá. Seu pai foi pastor metodista. Meu filho é pastor e tenho mais de 80 membros do clã, espalhados pelo mundo, ordenados ao ministério. Sempre fomos uma família reformadora. Meu pai repensou muitas coisas e, contrariando o meu avô, reformulou o que cria sobre escatologia, sacramentos e liturgia. Seguindo seus passos, continuei a indagar, a voltar às Escrituras. Pergunto sempre se o que pregamos e o que creio, pessoalmente, realmente é bíblico ou se é apenas algo que a tradição pentecostal recente criou. Voltei a estudar. Frequentei o Reformed Theological Seminary, na Flórida (EUA). Trabalhamos a nossa teologia como denominação. Hoje, sou defensor da tradição reformada. Continuo a defender, também, a continuidade dos dons espirituais. As duas coisas não são incongruentes. Vivem em perfeita harmonia, como já foi visto na vida de Charles Spurgeon e outros, em cujas biografias há referências ao exercício de dons espirituais.
Mas sejamos francos. Nós nos acostumamos a rotular uns aos outros. Uma vez que fazemos isso, é difícil mudar de ideia. Para muitos sou um neopentecostal. Mas protesto e vou continuar a protestar. O escândalo do neopentecostalismo é tão angustiante para mim como para qualquer outro que não o abrace – talvez até mais. Vejo nesse movimento um desvio grave das amarras bíblicas. Há uma corrupção do Evangelho em andamento, a título de dar ao povo o que o povo precisa, ou o que o povo quer. Então continuo a escrever e transmitir minhas ponderações. Há quem não saiba o que fazer comigo. Compreendo isso. Mesmo assim, proponho que avancemos.
Vamos nos conhecer um pouco. Pelas ideias e pelas posturas, peço novamente a gentileza de poder me explicar. Afinal, você não sabe que eu fui muito ruim de futebol quando criança e que ninguém me queria no seu time. Ninguém sabe que eu sempre quis ter cabelo grande, mas meu pai falou que “filho de pastor não pode dar mau exemplo”. Então ele insistia em mandar cortar meu cabelo curtinho, num estilo “nazista” (pelo menos eu achava). Ninguém sabe que até os meu 10 anos era conhecido como “Robbie”, nem que meu sonho de criança era ser arquiteto. Agora sabem. Só que sou uma pessoa e não uma salsicha que saiu da fábrica pentecostal. Sou um pensador e não um clone de uma escola de pensamento. Você também é. Tem história. Tem suas dúvidas. Tem os seus questionamentos. Para crescer precisamos nos abrir um pouco, ouvir um pouco mais. Talvez para isso tenhamos de desligar a televisão e baixar o barulho da vila global que tanto invade a nossa cabeça e dificulta a nossa capacidade de ver pessoas como são – indivíduos com trajetórias.
O nome pode confundir, pode nos predispor ao equívoco. Pode nos afastar sem que tenhamos sequer ouvido uns aos outros. Sem diálogo e sem nos despirmos do preconceito, não cresceremos em comunhão e na graça de Cristo. Mas vamos continuar a conversar, ouvir, ponderar e crescer. Como diz um amigo meu, “vamos que vamos”.
Na paz,
+W