Há uma força social que corre em paralelo à vida cotidiana das grandes cidades. É uma corrente que fica abaixo da superfície. Como um esgoto que ninguém vê, mas que, vez por outra, em função de algum vazamento, faz a sua presença sentida por meio de um cheiro fétido. Choca, interrompe e nos força a perguntar sempre: “De onde vem isso?” Sabemos. Só não queremos ser lembrados que por baixo de todo este mundo “normal” há um submundo que flui e faz parte do nosso universo.
Essa força social é anárquica. É a força da entropia, da desagregação, da ferrugem, da podridão, dos nossos impulsos mais baixos. É a revista Caras, que parece ocupar toda e qualquer sala de espera, seja de consultório médico ou salão de beleza. E quem resiste a ler uma fofoca? É o programa de televisão esdrúxulo que desfila a barbárie dos menos afortunados. Se digladiam com acusações de infidelidade, violência, cachorrice, canalhice e por aí vai. Aos tapas e palavrões o circo “pega fogo” e os índices de audiência sobem para o deleite dos bárbaros que produzem esse esgoto aberto para o nosso entretenimento. Bebemos desse esgoto. A comunicação em massa se empanturra de detritos mentais. Somos brutalizados e nos acostumamos ao mau cheiro. Chegamos a procurar mais uma baforada para nos… alegrar?
Há uma regra social chamada “a regra da janela quebrada”. Especialmente em prédios velhos, quando uma janela é deixada quebrada, os que passam pela sua frente se veem tentados a jogar uma pedra e quebrar outra. Em pouco tempo, todas as janelas acabam sendo quebradas. Quebrar uma janela com uma pedra dá uma sensação de rebeldia, de revanche, é a externalização do sentimento de frustração indo à forra, nem que seja de maneira pequena e “inofensiva”. O precedente marginal e anárquico nos chama para nos juntar por meio do ato transgressor. E, ao fazê-lo, nos sentimos moleques, microanarquistas. Gostamos de sentir isso. Mesmo que mais ninguém nos veja fazê-lo. Aliás, só adolescentes gostam de desfilar a sua rebeldia. Quando adultos, ele se torna o nosso segredo sujo. Então taquemos mais uma pedrinha. Quebremos mais uma janela. Vamos lá, é gostoso. Afinal, os donos do prédio nem parecem se importar com a sua fachada mesmo. Então vamos.
A pichação tem o mesmo efeito. Basta um muro sofrer uma violação da sua fachada linda e logo um exército de pichadores descerá com as suas latas de spray demarcando território, tal qual qualquer tribo canina. Deixam a sua marca. A vizinhança se acostuma. Os donos dos muros acabam se cansando de tentar manter uma pintura mais arrumada. O caos avança. A anarquia flui pelos esgotos sociais. Depois de um tempo, nem sentimos mais o cheiro. Adaptamo-nos, nos acostumamos e acabamos achando tudo normal. Já que os lobos uivam no nosso próprio peito, a sua música estranha, no lado de fora, não nos causa tanta espécie.
Quando falamos de “igreja” nestes tempos tão confusos e anárquicos, acabamos trocando histórias sobre as “últimas”. É cada absurdo, cada barbaridade, cada gesto de anarquia eclesiástica que parece não ter fim. Como uma janela quebrada, parece que com cada delito, cada loucura “penteca”, outros se “inspiram” e acabam levando a “parada” para apostas mais e mais altas (ou melhor, mais baixas). As “denúncias” acabam sendo uma força social que promove essa pichação eclesiástica. As conversas giram em torno do cheiro fétido de práticas e ideias que se alastram sem que haja o menor fundamento bíblico. Os tradicionais se apavoram. Os pentecostais mais sérios ficam envergonhados. Mas os simplórios ambiciosos, como pichadores ensandecidos, ficam a elucubrar como poderão fazer “melhor”. Pegam mais uma pedrinha para quebrar mais uma janela. É gostoso. “Vai ser uma benção”. Trágica e equivocada jactância.
“Não vamos subir o monte apenas. Vamos subir uma montanha. Não vamos só tomar posse da benção. Vamos tomar posse do próprio inferno e dar uma surra em Satanás”, dizem. Com bravata regada a ignorância histórica e bíblica, os mal preparados e subitamente ordenados ao “ministério” jogam a sua pedrinha, também. Quebram mais uma janela. Os outros observam.
Mas há aqueles que amam o edifício. Há ainda aqueles que amam a cidade de Deus. Choram, oram, ensinam, discipulam. Não têm prazer em ouvir as barbaridades alheias. Sua alma se vê ferida pela anarquia que ganha espaço, a cada dia, no arraial dos santos em Cristo. Há bárbaros rindo por trás de portas fechadas. Lucram com a boa-fé de pessoas carentes e sofridas. Valem-se da credulidade do povo. Jogam promessas das suas plataformas, tal qual Chacrinha fazia, faz tempo. Ele perguntava “vocês querem bacalhau?” A plateia respondia “queremos!”. E ele jogava um peixe salgado para o meio do auditório e todos se lançavam para tentar pegá-lo.
Anarquia é uma doença social. É um dos sintomas do fim iminente de uma civilização. E a nossa está morrendo. Nossas cidades estão doentes. Nossas ruas estão cheias de odores fétidos. Nossas igrejas servem como palco para os animadores de auditório, que animam, prometem e, no fim, vão rindo para o banco.
As janelas da igreja estão quebradas. Os pichadores já não se contentam em sujar a fachada. Alguns marcam o seu território de dentro do templo. O povo se alimenta dos detritos. Enchem a barriga de capim seco. Mas muitos já abandonaram o edifício, os “desigrejados”. Melhor se esconder em casa do que sair e ter que ser brutalizado por “aventuras e aventureiros” da fé. Não aguentam mais o cheiro e nem sabem por onde começar para achar uma “boa igreja”.
Os anjos choram.
Quem ficará na brecha? Quem dobrará o joelho? Quem deixará de repetir os absurdos, se recusando até a mencioná-los? Quem pranteará perante o trono da graça? Quem corrigirá os seus maus caminhos? Quem pagará o preço para consertar as janelas quebradas, uma por uma, até que o edifício volte a sua glória inicial? Quem dirá “eis-me aqui, Senhor. Manda-me e eu irei”?
Na paz,
+W