O Resgate de almas e mentes
Desde o seu nascedouro, o Protestantismo foi marcado pela dedicação aos livros e pela devoção ao Livro dos livros, a formação de uma mente cristã bíblica. As primeiras gerações dos Reformadores sabiam que, sem a tradução e a disseminação da Bíblia nas línguas populares, o povo não conseguiria pensar e viver como cristão.
Por isso, surgiram confissões e catecismos apropriados para a instrução de pastores, pais e filhos. Além disso, era necessária uma educação básica que permitisse ler, compreender e assimilar esses conteúdos. Sem tudo isso, o chamado “povo cristão” dificilmente seria, de fato, formado pela Palavra de Deus.
Missões protestantes e o esforço pela leitura da Bíblia
Ao longo da história das missões protestantes vemos o mesmo empenho. Missionários se dedicaram a traduzir as Escrituras Sagradas para as línguas nativas dos povos alcançados pelo Evangelho. Em seguida, produziram materiais educacionais adequados para instruir novos convertidos e treinar lideranças nativas.
Em nosso próprio país, o protestantismo de missão do século 19 teria tido um impacto evangelístico insignificante se não fosse o trabalho incansável das sociedades bíblicas e dos colportores. Eles disseminavam a Palavra de Deus em um Brasil onde isso era praticamente impossível, além de, muitas vezes, proibido. Assim, a Bíblia chegava aos lares e corações.
A crise atual: pouca leitura, pouca transformação
Diante desse legado, é trágico constatar o desprezo atual pela leitura, pelo estudo e pelo ensino dedicado da Palavra de Deus. A leitura bíblica continua sendo decisiva para a reforma da Igreja, para a catequização das gerações e para a evangelização eficaz dos novos na fé. No entanto, muitos têm negligenciado esse meio de graça.
O contraste com a nossa cultura é evidente. Em um Brasil onde, segundo dados do IBGE, cada cidadão gasta em média duas horas e trinta e cinco minutos diante da televisão e apenas cinco minutos com alguma leitura em mãos, o resultado espiritual não poderia ser outro. A mente e a vida de um povo que se diz “cristão” acabam moldadas mais pela mídia do que pelas Escrituras.
A necessidade de uma mente cristã
Nas últimas décadas, alguns pastores e pensadores cristãos têm soado um alerta importante. Não basta alcançar multidões para Jesus se não houver preocupação com a formação de uma mente cristã.
Homens como John Stott (Crer é Também Pensar), Harry Blamires (A Mente Cristã) e John Piper (Pense: A Vida da Mente e o Amor de Deus) insistem nisso. Eles apenas ecoam o clamor do apóstolo Paulo sobre a necessidade de cultivarmos uma mente cativa a Cristo, para a glória de Deus (Rm 12.1–2; 2 Co 10.5; Fp 4.8). Em outras palavras, o Evangelho toca o coração, mas também renova o pensamento.
O alerta de Charles Malik: duas tarefas inseparáveis
Entre os alertas mais contundentes das últimas décadas está a famosa palestra “As Duas Tarefas”, do Dr. Charles Habib Malik. Ela foi proferida em 13 de setembro de 1980, na inauguração do Centro de Estudos Billy Graham, na Wheaton College, onde o evangelista se formou.
Malik, ex-embaixador do Líbano nos Estados Unidos e ex-presidente do Conselho de Segurança da ONU, falou sobre a relação entre evangelização e cultivo da mente cristã. Ele afirmou que o evangelismo é, de fato, a tarefa mais importante do ser humano mortal. Levar o homem orgulhoso, rebelde e autossuficiente a reconhecer, em lágrimas, a majestade, a graça e o poder real de Jesus Cristo é o maior acontecimento da vida de qualquer pessoa.
Entretanto, ele acrescenta que não possuímos apenas uma alma e uma vontade que precisam ser salvas. Temos também um raciocínio que deve ser afiado e satisfeito. Nosso pensamento pergunta sobre tudo, inclusive sobre Deus. Por isso, amamos e adoramos o Senhor de todo o nosso entendimento. Assim, não há vergonha em disciplinar e cultivar a mente ao máximo; pelo contrário, é nossa obrigação e honra fazê-lo.
Segundo Malik, se o evangelismo é a tarefa mais importante, a tarefa que vem logo em seguida não é política, nem economia, nem a busca por conforto e segurança. Em segundo lugar, está a necessidade de descobrir o que está acontecendo com a mente e o espírito nas escolas e universidades.
A batalha pela mente da próxima geração
Malik também alertou para a situação da Igreja e da família diante da influência das universidades. Segundo ele, ambas travam uma batalha perdedora quanto à saúde espiritual e à integridade da juventude.
Toda a pregação do mundo e toda a atenção dos melhores pais terão pouco efeito se, dia após dia, os filhos forem expostos a conteúdos que cancelam, na prática, o que ouvem em casa e na Igreja. Desse modo, o problema da escola e da universidade torna-se um dos mais críticos que afligem a civilização ocidental.
Salvar a alma e salvar a mente
Em sua palestra, Malik argumentou ainda que, se Cristo é a luz do mundo, essa luz precisa iluminar o problema da formação da mente. O desafio não é apenas ganhar almas, mas salvar mentes também. Se ganharmos o mundo inteiro e perdermos a mente do mundo, não teremos ganho coisa alguma.
Ele então levanta perguntas perturbadoras: para crescer intelectualmente é preciso sacrificar Jesus? Para render toda a vida a Cristo é necessário abandonar o estudo e a pesquisa? A rendição ao estudo seria incompatível com a rendição a Jesus? Essas perguntas nos forçam a pensar com seriedade.
Ao criticar o ativismo e o imediatismo, Malik denuncia a pressa dos cristãos em sair da escola ou da faculdade apenas para ganhar dinheiro ou servir na Igreja. Muitos não percebem o valor de gastar anos de estudo em diálogo com as grandes mentes do passado, a fim de amadurecer e ampliar a capacidade de pensar.
Por isso, ele resume: cristãos responsáveis enfrentam duas tarefas inseparáveis — salvar a alma e salvar a mente. Se o Espírito Santo deseja que cuidemos da alma, certamente não aprova que negligenciemos a mente. Nenhuma civilização pode durar muito tempo com uma mente tão confusa e desordenada como a atual.
Um chamado para esta geração
Diante desse quadro, nosso clamor deve ser claro: que o Senhor nos dê graça para dedicar a devida atenção à mente e à alma, em nossas vidas, em nossos lares e em nossas igrejas. A tarefa dupla permanece diante de nós. Precisamos resgatar a alma e a mente desta e das próximas gerações para a glória de Cristo.
[1] Luiz Antonio Giraldi, A Bíblia no Brasil Império (SBB).
[2] O texto desta palestra histórica está disponível na íntegra no livro editado por William Lane Craig e Paul M. Gould, The Two Tasks of the Christian Scholar: Redeeming the Soul, Redeeming the Mind (Crossway, 2007).